Spinning Jenny

Em famosa nota de rodapé em O Capital, Marx cita a história das espécies biológicas contada a partir de Darwin e lança o desafio da escrita de uma história da evolução dos projetos das máquinas, desestimando o papel dos inventores individuais, em favor das forças sociais e da luta de classes: “Uma história crítica da tecnologia provaria, sobretudo, quão pouco qualquer invenção do século XVIII cabe a um só indivíduo.” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 8).

Marx, que como vimos era um dedicado estudioso do desenvolvimento tecnológico, adianta alguns pontos dessa história em um breve relato que ele apresenta para ilustrar sua análise econômica mais abrangente da transição da manufatura à grande indústria. Nesta obra, Marx confere papel preponderante no início da Revolução Industrial ao desenvolvimento da máquina-ferramenta. A máquina-ferramenta que ele também chama de máquina de trabalho é a parte da máquina que, tendo recebido movimento da máquina-motriz e do mecanismo de transmissão, “se apodera do objeto de trabalho e o modifica conforme a uma finalidade” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 9).

Contudo, conforme nota Santos (1983, p. 18) é erroneamente dada “excessiva ênfase [da literatura atual] ao surgimento da máquina a vapor como causa da Revolução Industrial”. Marx já havia abordado diretamente esta questão:

É dessa parte da maquinaria, a máquina-ferramenta, que se origina a revolução industrial no século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada.[…] A própria máquina a vapor, como foi inventada no final do século XVII, durante o período manufatureiro, e continuou a existir até o começo dos anos 80 do século XVIII,11 não acarretou nenhuma revolução industrial. Ocorreu o contrário: foi a criação das máquinas-ferramentas que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada. (MARX, 1996, l.1, v.2, p. 9, 11).

Exemplo dessa visão, criticada por Santos, é o trabalho de Wrigley, da cadeira de demografia histórica e presidente da Academia Britânica de Ciência entre 1994 e 2000, para quem o uso do carvão como energia é a chave para se entender a Revolução Industrial. Para este, a queima do carvão forneceu uma nova fonte maciça de energia, que permitiu o crescimento da indústria, sem que isso representasse uma acumulação sobre o que era dispendido com a alimentação e habitação da população (GRIFFIN, 2013). Contudo, tendo se tornado o polo dinâmico do desenvolvimento na fase seguinte, marcada pelos navios a vapor e pelas ferrovias, neste primeiro momento, o vapor era utilizado de forma limitada para drenar minas e pântanos, e para mover algumas máquinas.

Em contrapartida, Engels, em a Situação da Classe Operária na Inglaterra, descreve como a dinâmica estabelecida entre dois ramos interligados da indústria têxtil, a fiação e a tecelagem, sendo o primeiro produtor de matéria-prima utilizada no segundo processo, dentro do contexto da luta de classes, acelerou a mecanização da produção, que neste primeiro momento era movimentada por energia manual ou por rodas d’água.

Mais especificamente, tanto Engels, como Marx em O Capital estabelecem a invenção da máquina de fiar conhecida como Spinning Jenny como o início do processo de mecanização da produção. Esta máquina continha um quadro de fiação multifuso, o que permitiu que cada trabalhador operasse com até 8 carretéis ao mesmo tempo. A máquina de fiar hidráulica, que logo a superou, permitiu uma ampliação ainda maior da produção. Com isso,

tornou-se possível produzir muito mais fio: se antes um tecelão ocupava sempre três fiandeiras, não contava nunca com fio suficiente e tinha de esperar para ser abastecido, agora havia mais fio do que o número dos trabalhadores ocupados podia processar. (ENGELS, 2008, p. 48).

Se recuarmos um pouco a análise desta relação dialética entre os ramos têxteis, veremos que a invenção da máquina de fiar já respondia à anterior introdução da lançadeira volante de John Kay, que aumentou a produtividade dos teares ao fazer a lançadeira (que tem papel análogo ao da agulha do tricô) correr sobre uma ranhura de madeira auxiliada por rodinhas, o que permitiu que um número maior de tramas pudessem ser tecidas concomitantemente (MCNEIL, 2002, p. 821). Entretanto, a lançadeira volante, mera extensão do braço do tecelão, é considerada uma ferramenta e não uma máquina.

Conforme nota Mcneil, apesar das estimativas variarem entre os estudiosos, com a lançadeira volante e outros inventos, mas antes da invenção da Spinning Jenny, eram necessários, em média, oito fiadores para produzir o material utilizado por cada tecelão:

Todas as novas invenções que emergiram durante o século dezoito para produzir diferentes tipos de tecido de forma mais rápida precipitaram uma crise: porque todo linho, lã ou algodão tinham que ser fiados na roca de fiar medieval, que operava com uma única fibra, fazendo com que o suprimento de fios se tornasse inadequado (MCNEIL, 2002, p. 824)

Conforme se pode perceber, estabeleceu-se um ciclo de retroalimentação entre a produção de fios e a de tecidos, o que reduziu o preço do produto final levando, em um ciclo virtuoso, ao crescimento de sua demanda, que teve novo efeito impulsionador sobre a indústria têxtil. Outro fator importante de geração de demanda foi a aprovação no parlamento inglês, entre 1690 e 1721, da série de leis conhecidas como Calico Acts que proibiram a importação de tecido, criando uma reserva de mercado para os tecidos produzidos na Inglaterra (BEVILAQUA, 2015, p. 259).

Engels percebe o impacto que esta relação dialética teve no surgimento da classe operária e na destruição dos yeoman, os pequenos proprietários agrícolas ingleses:

houve necessidade de mais tecelões e seus salários aumentaram. Podendo ganhar mais trabalhando em seu tear, a pouco e pouco o tecelão abandonou suas ocupações agrícolas e dedicou-se inteiramente à tecelagem (…) Gradativamente, a classe dos tecelões-agricultores foi desaparecendo, sendo de todo absorvida na classe emergente dos exclusivamente tecelões, que viviam apenas de seu salário e não possuíam propriedade, nem sequer a ilusão de propriedade que o trabalho agrícola confere – tornaram-se, pois, proletários (working men). A isso se juntou a destruição da antiga relação entre fiandeiros e tecelões. Até então, na medida em que era possível, o fio era fiado e tecido sob um mesmo teto; agora, já que tanto a jenny quanto o tear exigiam mão robusta, os homens também se puseram a fiar e famílias inteiras passaram a viver exclusivamente disso (…) Foi dessa maneira que se iniciou a divisão do trabalho entre fiação e tecelagem, que seria levada ao grau extremo na indústria posterior. (ENGELS, 2008, p. 48 e 49).

Além do proletariado industrial, que passou a se concentrar nas cidades, a revolução industrial também transformou o panorama agrário. O proprietário médio (yeoman) não podia mais competir com a crescente classe dos latifundiários, que se beneficiou da migração dos antigos fazendeiros tecelões para as cidades, apossando-se de suas terras. Para o primeiro, “que não tinha outra alternativa senão vender sua terra – que já não o sustentava – e adquirir uma jenny ou um tear ou empregar-se como jornaleiro, proletário agrícola, de um grande arrendatário” (ENGELS, 2008, p. 49). Como nota Bevilaqua, “este é um exemplo de que na própria gênese da fase industrial do capitalismo se encontra o problema da desproporção entre os setores, e que, em invés dela representar a causa da crise orgânica do sistema, […] insere um desequilíbrio que enseja toda uma dinâmica de transformações tecnológicas” (BEVILAQUA, 2015, p. 261).

Esse movimento de incessante desenvolvimento de novas tecnologias foi ganhando momentum. Para Marx: “a mecanização da fiação tornou necessária a mecanização da tecelagem e ambas tornaram necessária a revolução mecânica e química no branqueamento, na estampagem e na tinturaria” (MARX, 1996, l. 1, v. 2, p. 18).

O passo seguinte é o desenvolvimento do tear mecânico:

É a colossal quantidade de fios disponibilizada pela spinning mule [uma sucessora da Spinning Jenny, movida com energia hidráulica] que leva à criação do tear mecânico, já que, como também nota Marx, os teares baseados na lançadeira volante, na qual o trabalhador ainda ditava o ritmo do trabalho, não cumpriam o critério de uma forma “emancipada da antiga forma corpórea tradicional da ferramenta, que se metamorfoseia em máquina” (BEVILAQUA, 2015, p. 262).

Por seu papel na criação de um novo panorama social, que, como vimos, tem profundas implicações demográficas, sociais, culturais e econômicas, a máquina é o que permite a passagem da subordinação formal do trabalho ao capital a uma subordinação real, na qual a subsunção dos trabalhadores proletários se dá, fundamentalmente, não através de imposições jurídicas e da coação direta, mas da necessidade econômica dos trabalhadores, separados dos meios de produção, que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver.

Portanto, junto do proletariado surge seu antagonista, a burguesia industrial. Se antes, “o comerciante entregava matérias-primas aos artesãos e garantia a compra de seus produtos, fazendo com que os artesões trabalhassem para ele, sem em nada mudar suas condições de trabalho”, agora o capitalista passava a controlar diretamente o trabalho produtivo (SANTOS, 1983, p. 17).