A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

Um século e meio após os estudos históricos de Marx e Engels, podemos perceber que se a primeira fase da Revolução Industrial, entre 1735 e 1840, é a parteira de um novo modo de produção, e uma segunda fase desta, entre 1848 e 19451, ao incorporar novas fontes de energia térmica à produção, é responsável pela expansão do sistema capitalista por todo o globo, sua terceira fase, iniciada no pós-guerra, e da qual somos contemporâneos, com a revolução dos mecanismos de transmissão e controle, a cibernética, ao permitir a automação da produção, leva o sistema capitalista a uma crise que se apresenta insuperável dentro dos marcos do sistema (BEVILAQUA, 2015).

Como vimos anteriormente, se não podemos responsabilizar diretamente a produção científica, entendida em seu sentido mais estreito como corpo de conhecimento sistematizado e promovido a partir de instituições oficiais (universidades, periódicos, conferências, etc), pelo impulso inicial que levou à industrialização, também não podemos descartar o poder explicativo neste contexto de um uso mais abrangente do termo ciência, considerado como uma nova atitude paradigmática frente a realidade material, experimentação empírica e autoridade da hierarquia religiosa.

Entretanto, com o tempo, essa distinção vai sendo apagada e o desenvolvimento da técnica

não é mais um resultado de avanços pragmáticos e empíricos na maneira de produzir. A ciência assumiu o papel de dirigente do desenvolvimento tecnológico, os ramos de produção se convertem em campos de atividades criados e controlados por ela. A ciência se converte em uma força produtiva direta (SANTOS, 1983, p. 9)

A economia passa a direcionar de forma mais contundente o conjunto da pesquisa científica, gigantescos ramos da indústria que não existiam são criados a partir de descobertas científicas e passam a atrair para si, em uma espécie de ciclo virtuoso, mais trabalho de pesquisa, como exemplificam o caso da indústria química, da aviação, da informática, entre outros. O trabalho científico sai da periferia e se coloca no centro do processo produtivo, como sua força mais importante.

Santos (1983) notou que a produção científica tornou-se parte essencial da acumulação. Os custos em pesquisa e desenvolvimento são parte do custo final do produto e os laboratórios e centros de pesquisa se transferem para dentro das empresas. A atividade científica é agora vista como um investimento que se incorpora ao capital constante e ao variável: entra nos custos de produção (SANTOS, 1983, p. 61-62).

Santos (1983) propõe uma ampliação do esquema original D-M-D de Marx, que, ao incorporar a atividade científica, pode ser reescrito da seguinte forma:

_________CI ……. I ____________
D – M
_________CP …… M’ – D – M’ – CPI … MI – DI

Na qual CI é o capital investido em tecnologia, o que permite que um capital, acumulado anteriormente, torne-se CPI, ou capital investido em um novo produto, resultado da pesquisa realizada (SANTOS, 1983, p. 76-81).

Por sua vez, a ciência se converte em tecnociência, que para ser realizada requer, cada vez mais, a invocação de uma parcela gigantesca de trabalho acumulado na forma de laboratórios, instrumentos científicos e capital humano (trabalho pretérito em educação e formação). A partir deste ponto não bastam mais bons mecânicos, inventores, artesãos, autodidatas, homens e mulheres práticos, esses personagens que protagonizaram o desenvolvimento tecnológico na época da manufatura e nos primórdios da indústria.

O processo empírico, baseado na tentativa e erro, adquire um novo significado dentro do contexto da produção científica industrial. Em seu diário, Thomas Edison relata ter testado 1.600 diferentes fibras até chegar no carbono e posteriormente no tungstênio como materiais ideias para a fabricação do filamento de suas lâmpadas. Mas, não se pode tomar essa anotação como evidência de que ele fez tudo isso sozinho, sua empresa contava com dezenas de pesquisadores trabalhando em tempo integral no desenvolvimento de seus produtos.

Talvez Edison seja o melhor arquétipo desta transição, com a qual a produção científica passou a ser quantificada pelo número de patentes registradas. Mesmo que o sistema de patentes já existisse há séculos, e que já tivessem ocorridas ferozes disputas legais em torno dessas, como a experimentada por James Watt que patenteou o motor a vapor em 1796, Edson acumulou 1.093 patentes em seu nome, apenas nos Estados Unidos, e utilizou-se destas para se ascender à classe burguesa.

Santos (1983) nos mostra como, no pós-guerra, esse processo de entrelaçamento entre a ciência e o capital se estreita ainda mais. Em seu artigo Mudança Tecnológica e Economia Mundial, apresentado aos seus alunos, mas ainda não publicado,este autor chama atenção para o fato de que:

A questão da integração da ciência como força produtiva é parte indispensável do processo de produção, pode ser medida através da intensidade dos gastos com pesquisa e desenvolvimento em relação ao produto de cada setor econômico (SANTOS, 2002, manuscritos).

Neste texto, Santos apresenta os dados do informe sobre ciência e tecnologia da OECD colhidos em fins década de 1980 e, com base neles, demonstra como estes investimentos cresceram maciçamente depois da Segunda Guerra Mundial. Para se ter uma ideia de como essa tendência continuou evoluindo, em 2016, o total mundial desses gastos foi de cerca de 1,15 trilhão de dólares, ou seja, mais de 2% do PIB mundial. Estão aí englobados os gastos com pesquisa básica, aplicada e em desenvolvimento (ou seja inovações baseadas em tecnologia já existente).

Cada vez mais, as pesquisas de ponta em diversas áreas dependem de projetos multibilionários, todos eles com forte participação estatal. O Grande Colisor de Hádrons levou uma década para ser construído e consumiu 7,5 bilhões de euros até 2010. O orçamento anual para sua operação consome cerca de 1 bilhão de dólares por ano. O Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser, que permitiu a observação de ondas gravitacionais custou 1,1 bilhão de dólares em 40 anos. No Projeto Genoma Humano foram dispendidos, até o sequenciamento concluído em 2003, 2,7 bilhões de dólares. São pesquisas que envolvem ciência básica, mas que também levaram ao desenvolvimento de diversas tecnologias para se viabilizarem, e resultam na criação de diversos novos produtos.

Nenhum destes projetos citados acima custou tanto quanto a Estação Espacial Internacional, cerca de 150 bilhões de dólares até 2015, divididos entre Estados Unidos, Rússia, Japão, Canadá e a Agência Espacial Europeia, composta por 13 países deste continente, quase 50% a mais que o projeto Apollo, que custou 23 bilhões de dólares em 1973, o que equivale a 107 bilhões de dólares se atualizarmos o valor para o parâmetro de 2016.

Podemos considerar como percursor desses megaprojetos de produção científica em escala industrial, o projeto Manhattan, que permitiu o controle sobre a fissão nuclear no final da Segunda Guerra, ao custo de 2 bilhões de dólares de então, o que hoje equivaleria a mais de 22 bilhões de dólares. A maioria destes projetos está ligada diretamente à área militar, sendo que o Manhattan foi desenvolvido no curso da Segunda Guerra, e permitiu a construção da bomba atômica, o que comprova o importante papel que este conflito e, posteriormente a corrida armamentista da guerra fria, desempenharam no crescimento dos investimentos em ciência.

Todos esses projetos foram financiados principalmente com recursos públicos e envolveram centenas, ou mesmo milhares, de pesquisadores trabalhando conjuntamente. Mas, a principal destinação dos investimentos foi em obras de infraestrutura, compra de equipamentos, gastos administrativos, entre outros custos indiretos.

O projeto Manhattan, por exemplo, chegou a empregar cerca de 130 mil pessoas, a maioria delas operários da construção civil, mas, neste e nos demais megaprojetos, foram significativas as contratações de trabalhadores especializados e qualificados, principalmente na produção dos equipamentos.

Na segunda metade do século XX, os gastos do setor privado com ciência e tecnologia seguiram o mesmo caminho de crescimento acelerado do investimento público, ainda que mais voltados para a pesquisa aplicada e para a inovação, onde o retorno é mais imediato.

A estruturação os centros de pesquisa e design dentro das grandes empresas começa no início do século XX, o que faz permite que esses assumam parte de um espaço que era até então exclusivo das universidades. Em 1925, com a emergência da telefonia como um negócio mundial, quatro mil cientistas e engenheiros foram contratados pelo recém-criado Bell Telephone Laboratories. Ao longo de sua história, esta instituição privada, mas que sempre recebeu bolsas da DARPA, agência de pesquisa em defesa dos EUA, hospedou 8 trabalhos que receberam o Nobel, além de ter sido lá que revolucionárias tecnologias foram desenvolvidas, como o transistor, o laser, o sistema operacional Unix e a linguagem de programação C. Desde 2016 este centro de pesquisa é de propriedade da gigante de telecomunicações finlandesa Nokia.

A participação da empresa Celera no Projeto do Genoma Humano e mais recentemente as mudanças relacionadas à indústria espacial nos Estados Unidos, com a NASA passando a conviver com outras fabricantes de foguetes, como a Space X e a Blue Origin, demonstram o controle cada vez mais direto do setor privado sobre essas áreas estratégicas.

1Por limites de tempo, não pudemos tratar especificamente da segunda fase da Revolução Industrial, período fundamental na história do sistema capitalista, pois compreende sua expansão por todo o globo e o surgimento do imperialismo. Sugerimos a leitura de BEVILAQUA (2015, p. 264-270) para uma interessante análise sobre como os novos problemas surgidos da necessidade de compreensão do mundo como um processo global levou a uma crise nos paradigmas científicos positivistas e ao surgimento das ciências de transformação como a Geologia e a Biologia Evolutiva.

A máquina-ferramenta e o início de um processo

A máquina-ferramenta e o início de um processo

Spinning Jenny

Em famosa nota de rodapé em O Capital, Marx cita a história das espécies biológicas contada a partir de Darwin e lança o desafio da escrita de uma história da evolução dos projetos das máquinas, desestimando o papel dos inventores individuais, em favor das forças sociais e da luta de classes: “Uma história crítica da tecnologia provaria, sobretudo, quão pouco qualquer invenção do século XVIII cabe a um só indivíduo.” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 8).

Marx, que como vimos era um dedicado estudioso do desenvolvimento tecnológico, adianta alguns pontos dessa história em um breve relato que ele apresenta para ilustrar sua análise econômica mais abrangente da transição da manufatura à grande indústria. Nesta obra, Marx confere papel preponderante no início da Revolução Industrial ao desenvolvimento da máquina-ferramenta. A máquina-ferramenta que ele também chama de máquina de trabalho é a parte da máquina que, tendo recebido movimento da máquina-motriz e do mecanismo de transmissão, “se apodera do objeto de trabalho e o modifica conforme a uma finalidade” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 9).

Contudo, conforme nota Santos (1983, p. 18) é erroneamente dada “excessiva ênfase [da literatura atual] ao surgimento da máquina a vapor como causa da Revolução Industrial”. Marx já havia abordado diretamente esta questão:

É dessa parte da maquinaria, a máquina-ferramenta, que se origina a revolução industrial no século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada.[…] A própria máquina a vapor, como foi inventada no final do século XVII, durante o período manufatureiro, e continuou a existir até o começo dos anos 80 do século XVIII,11 não acarretou nenhuma revolução industrial. Ocorreu o contrário: foi a criação das máquinas-ferramentas que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada. (MARX, 1996, l.1, v.2, p. 9, 11).

Exemplo dessa visão, criticada por Santos, é o trabalho de Wrigley, da cadeira de demografia histórica e presidente da Academia Britânica de Ciência entre 1994 e 2000, para quem o uso do carvão como energia é a chave para se entender a Revolução Industrial. Para este, a queima do carvão forneceu uma nova fonte maciça de energia, que permitiu o crescimento da indústria, sem que isso representasse uma acumulação sobre o que era dispendido com a alimentação e habitação da população (GRIFFIN, 2013). Contudo, tendo se tornado o polo dinâmico do desenvolvimento na fase seguinte, marcada pelos navios a vapor e pelas ferrovias, neste primeiro momento, o vapor era utilizado de forma limitada para drenar minas e pântanos, e para mover algumas máquinas.

Em contrapartida, Engels, em a Situação da Classe Operária na Inglaterra, descreve como a dinâmica estabelecida entre dois ramos interligados da indústria têxtil, a fiação e a tecelagem, sendo o primeiro produtor de matéria-prima utilizada no segundo processo, dentro do contexto da luta de classes, acelerou a mecanização da produção, que neste primeiro momento era movimentada por energia manual ou por rodas d’água.

Mais especificamente, tanto Engels, como Marx em O Capital estabelecem a invenção da máquina de fiar conhecida como Spinning Jenny como o início do processo de mecanização da produção. Esta máquina continha um quadro de fiação multifuso, o que permitiu que cada trabalhador operasse com até 8 carretéis ao mesmo tempo. A máquina de fiar hidráulica, que logo a superou, permitiu uma ampliação ainda maior da produção. Com isso,

tornou-se possível produzir muito mais fio: se antes um tecelão ocupava sempre três fiandeiras, não contava nunca com fio suficiente e tinha de esperar para ser abastecido, agora havia mais fio do que o número dos trabalhadores ocupados podia processar. (ENGELS, 2008, p. 48).

Se recuarmos um pouco a análise desta relação dialética entre os ramos têxteis, veremos que a invenção da máquina de fiar já respondia à anterior introdução da lançadeira volante de John Kay, que aumentou a produtividade dos teares ao fazer a lançadeira (que tem papel análogo ao da agulha do tricô) correr sobre uma ranhura de madeira auxiliada por rodinhas, o que permitiu que um número maior de tramas pudessem ser tecidas concomitantemente (MCNEIL, 2002, p. 821). Entretanto, a lançadeira volante, mera extensão do braço do tecelão, é considerada uma ferramenta e não uma máquina.

Conforme nota Mcneil, apesar das estimativas variarem entre os estudiosos, com a lançadeira volante e outros inventos, mas antes da invenção da Spinning Jenny, eram necessários, em média, oito fiadores para produzir o material utilizado por cada tecelão:

Todas as novas invenções que emergiram durante o século dezoito para produzir diferentes tipos de tecido de forma mais rápida precipitaram uma crise: porque todo linho, lã ou algodão tinham que ser fiados na roca de fiar medieval, que operava com uma única fibra, fazendo com que o suprimento de fios se tornasse inadequado (MCNEIL, 2002, p. 824)

Conforme se pode perceber, estabeleceu-se um ciclo de retroalimentação entre a produção de fios e a de tecidos, o que reduziu o preço do produto final levando, em um ciclo virtuoso, ao crescimento de sua demanda, que teve novo efeito impulsionador sobre a indústria têxtil. Outro fator importante de geração de demanda foi a aprovação no parlamento inglês, entre 1690 e 1721, da série de leis conhecidas como Calico Acts que proibiram a importação de tecido, criando uma reserva de mercado para os tecidos produzidos na Inglaterra (BEVILAQUA, 2015, p. 259).

Engels percebe o impacto que esta relação dialética teve no surgimento da classe operária e na destruição dos yeoman, os pequenos proprietários agrícolas ingleses:

houve necessidade de mais tecelões e seus salários aumentaram. Podendo ganhar mais trabalhando em seu tear, a pouco e pouco o tecelão abandonou suas ocupações agrícolas e dedicou-se inteiramente à tecelagem (…) Gradativamente, a classe dos tecelões-agricultores foi desaparecendo, sendo de todo absorvida na classe emergente dos exclusivamente tecelões, que viviam apenas de seu salário e não possuíam propriedade, nem sequer a ilusão de propriedade que o trabalho agrícola confere – tornaram-se, pois, proletários (working men). A isso se juntou a destruição da antiga relação entre fiandeiros e tecelões. Até então, na medida em que era possível, o fio era fiado e tecido sob um mesmo teto; agora, já que tanto a jenny quanto o tear exigiam mão robusta, os homens também se puseram a fiar e famílias inteiras passaram a viver exclusivamente disso (…) Foi dessa maneira que se iniciou a divisão do trabalho entre fiação e tecelagem, que seria levada ao grau extremo na indústria posterior. (ENGELS, 2008, p. 48 e 49).

Além do proletariado industrial, que passou a se concentrar nas cidades, a revolução industrial também transformou o panorama agrário. O proprietário médio (yeoman) não podia mais competir com a crescente classe dos latifundiários, que se beneficiou da migração dos antigos fazendeiros tecelões para as cidades, apossando-se de suas terras. Para o primeiro, “que não tinha outra alternativa senão vender sua terra – que já não o sustentava – e adquirir uma jenny ou um tear ou empregar-se como jornaleiro, proletário agrícola, de um grande arrendatário” (ENGELS, 2008, p. 49). Como nota Bevilaqua, “este é um exemplo de que na própria gênese da fase industrial do capitalismo se encontra o problema da desproporção entre os setores, e que, em invés dela representar a causa da crise orgânica do sistema, […] insere um desequilíbrio que enseja toda uma dinâmica de transformações tecnológicas” (BEVILAQUA, 2015, p. 261).

Esse movimento de incessante desenvolvimento de novas tecnologias foi ganhando momentum. Para Marx: “a mecanização da fiação tornou necessária a mecanização da tecelagem e ambas tornaram necessária a revolução mecânica e química no branqueamento, na estampagem e na tinturaria” (MARX, 1996, l. 1, v. 2, p. 18).

O passo seguinte é o desenvolvimento do tear mecânico:

É a colossal quantidade de fios disponibilizada pela spinning mule [uma sucessora da Spinning Jenny, movida com energia hidráulica] que leva à criação do tear mecânico, já que, como também nota Marx, os teares baseados na lançadeira volante, na qual o trabalhador ainda ditava o ritmo do trabalho, não cumpriam o critério de uma forma “emancipada da antiga forma corpórea tradicional da ferramenta, que se metamorfoseia em máquina” (BEVILAQUA, 2015, p. 262).

Por seu papel na criação de um novo panorama social, que, como vimos, tem profundas implicações demográficas, sociais, culturais e econômicas, a máquina é o que permite a passagem da subordinação formal do trabalho ao capital a uma subordinação real, na qual a subsunção dos trabalhadores proletários se dá, fundamentalmente, não através de imposições jurídicas e da coação direta, mas da necessidade econômica dos trabalhadores, separados dos meios de produção, que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver.

Portanto, junto do proletariado surge seu antagonista, a burguesia industrial. Se antes, “o comerciante entregava matérias-primas aos artesãos e garantia a compra de seus produtos, fazendo com que os artesões trabalhassem para ele, sem em nada mudar suas condições de trabalho”, agora o capitalista passava a controlar diretamente o trabalho produtivo (SANTOS, 1983, p. 17).

A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

Para entendermos o surgimento da indústria a partir do materialismo histórico, é necessário compreendermos o fato, demonstrado por Bevilaqua (2016), de que no método de Marx a máquina deve ser entendida como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, o que contrasta com a abordagem mais histórico-descritiva de Rosenberg. Deve-se, primeiramente, entender o papel da máquina nas transformações ocorridas no processo de produção de valores de uso, um papel que a distingue da ferramenta, pois se ao longo de todo o período pré-industrial da história da humanidade era a força de trabalho o ponto de partida do revolucionamento do modo de produção, na grande indústria este ponto de partida está no meio de trabalho (MARX, 1996, Livro 1, v. 2. p. 8). Em contraste com a ferramenta e mesmo com a manufatura, o sistema de máquinas relativiza todos os limites impostos pela natureza do corpo humano à produção, o que é um pré-requisito para a aplicação extensiva e sistemática da ciência na produção.

O sistema de máquinas e aplicação da ciência na produção ocorrem após um longo desenvolvimento do processo de trabalho, durante o qual este se torna cada vez mais social:

o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho pressupõe cooperação em larga escala, como só com esse pressuposto é que podem ser: organizadas a divisão e a combinação do trabalho; poupados meios de produção mediante concentração maciça; criados materialmente meios de trabalho apenas utilizáveis em conjunto, por exemplo, sistema de maquinaria etc.; postas a serviço da produção colossais forças da Natureza; e pode ser completada a transformação do processo de produção em aplicação tecnológica da ciência. (MARX, 1988, l. 1, v. 2 p. 255-256).

Já na perspectiva do processo de produção de valores, deve-se partir da concepção da máquina como capital constante em geral, ou seja, como trabalho morto objetivado, valor cristalizado. “Neste sentido, a máquina é um armazenador de trabalho vivo, que pode ser despendido em um outro ciclo produtivo” (BEVILAQUA, 2015, p. 256). Mas, além disto, no processo de produção de valores, se revela uma nova função da máquina que demarca novamente sua distinção da ferramenta e que vai além da mera redução de custos. Conforme Marx nota, o móbil da burguesia ao investir no desenvolvimento da maquinaria é: “baratear a mercadoria e, mediante o barateamento da mercadoria, baratear o próprio trabalhador.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 1, p. 435).

Desta forma, a maquinaria aparece como produto da luta de classes, arma da burguesia contra o proletariado, o que está na base das razões históricas do surgimento do movimento de resistência dos ludistas. Prova disso é que seu emprego se dá primeiramente não nos locais onde a mão de obra era escassa, mas justamente na região da Inglaterra onde se concentrava um enorme exército industrial, o qual seu emprego regulava e disciplinava.

Da mesma forma, a luta interna entre a burguesia é fundamental para compreendermos a difusão das máquinas:

este papel só faz sentido ao observar-se a tendência à equalização da taxa de lucro entre os capitalistas que atuam em diversos ramos. A adoção das máquinas apenas se justifica em um mercado no qual se confrontam diversos capitalistas, sejam eles os primeiros industriais que expropriaram os tecelões de Lancashire no século XVIII, ou os grandes monopólios que nos dias de hoje travam guerras entre si. Sem isso a mecanização não se sustentaria; não seria possível a sobrevivência dos setores com alta composição orgânica se eles não fossem capazes, através das trocas desiguais, de se apropriarem da mais-valia produzida nos outros ramos, onde o uso do capital variável é mais intenso (BEVILAQUA, 2015, p. 257).

Isso explica porque a classe capitalista é a primeira classe dirigente na história cujos interesses estão indissoluvelmente ligados à mudança tecnológica e não à manutenção do status quo. Essa característica do modo de produção capitalista, que embutiu a constante renovação tecnológica à sua dinâmica econômica, levando à Revolução Industrial e à transformações que não encontram paralelo na história pós-neolítica, foi descrita por Marx e Engels na famosa passagem do Manifesto Comunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras (MARX, 1998, p. 43).

Em sua existência como corporificação do capital, a máquina, vista como produto ou como processo industrial, transforma a ciência em uma força produtiva dominada pelos capitalistas:

O desenvolvimento do meio de trabalho em maquinaria não é casual para o capital, mas é a reconfiguração do meio de trabalho tradicionalmente herdado em uma forma adequada ao capital. A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo de produção. A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo, e o capital fixo, na medida em que o capital é considerado na relação consigo mesmo, como a forma mais adequada do capital de modo geral (MARX, 2011, p. 581-582).

Desta forma, mesmo sendo o acúmulo de séculos do trabalho de cientistas, que, em muitos casos se converteram em proletários assalariados, ela se apresenta como alheia aos trabalhadores, levando à mistificação do capital, à máxima fetichização da mercadoria:

A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina (MARX, 2011, p. 580-581).

Esse processo de estranhamento dos trabalhadores com relação à sua própria produção, à medida que seu corpo foi sendo objetivado nas três partes que, segundo Marx, constituem o sistema de máquinas: máquina-ferramenta, motor e mecanismos de transmissão e controle, ocorreu (e ocorre) em um longo período histórico de sucessivas ondas de incorporação tecnológica à produção, a Revolução Industrial. A lógica que permite sua divisão em três fases é objeto da análise de Bevilaqua (2015):

transformações nas três partes que conformam o sistema de máquinas, permitem a compreensão da dialética entre as três e, como cada uma delas, dentro de um determinado processo histórico, assume o lugar de polo dinâmico da relação, ditando o ritmo e a direção das transformações operadas nas outras. (BEVILAQUA, 2015, p. 251).

A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A especificidade do processo de trabalho no modo de produção capitalista é que o processo de produção de valores de uso, objetos destinados à satisfação das necessidades humanas, conforma uma unidade dialética com o processo de produção de valor, mensurado através do quantum de trabalho social contido em cada mercadoria. Enquanto que a produção de valores de uso só é possível pelo caráter concreto do trabalho, o processo de produção de valor só faz sentido ao considerar-se o caráter abstrato do trabalho, justamente o que permite que as mais variadas atividades produtivas humanas possam ser comparadas e seus resultados intercambiados no mercado.

Esta contradição histórica desenvolvida pela relação-capital, manifesta no duplo caráter do trabalho (concreto e abstrato) e que se expressa na ambiguidade da forma mercadoria (valor de uso e valor de troca) também se manifesta na produção científica:

Ao mesmo tempo em que ela é um momento do acúmulo de conhecimento humano, que pode ser traduzido em uma aplicação concreta (seu valor de uso), ela também é uma indústria, um departamento da produção capitalista, que só pode ter sua dinâmica explicada pelo processo de valorização do capital (seu valor de troca) (BEVILAQUA, 2015, p. 295).

Conforme observa Marx no fragmento dos Grundrisse dedicado às máquinas, “A invenção torna-se então um negócio e a aplicação da ciência à própria produção imediata, um critério que a determina e solicita” (MARX, 2011, p. 587).

Reconhecer a mercantilização da ciência e sua submissão à lógica da relação capital no processo de produção de valor não neutraliza o papel revolucionário do desenvolvimento tecnológico que media e transforma a relação entre os seres humanos, e também entre estes e a natureza.

O processo de reprodução de capital não pode ser examinado satisfatoriamente apenas pelo lado do valor de troca, por isso Marx abordou ambos os aspectos da mercadoria e do trabalho em sua análise. É na vitalidade dessa contradição, e no movimento que resulta da unidade dos contrários, que residem os efeitos que permitem vincular a produção científica à crise orgânica do capital.

Santos (1983) destaca o fato de que as mudanças tecnológicas afetam o caráter útil e concreto dos bens. São produzidas na vida material e não no plano mercantil. São um acúmulo da experiência produtiva do homem, do desenvolvimento da ciência e independem do modo de produção. O sistema não pode criar um conhecimento que não se submete à própria lógica do conhecimento. Isso não significa atribuir uma neutralidade à tecnologia. O capitalismo impulsiona as mudanças que favorecem o aumento da taxa de lucro. (SANTOS, 1983, p. 237-250)

A partir da lógica da análise econômica, Rosenberg (2006, p. 18) refere-se ao debate em torno do papel econômico desempenhado pelo progresso científico-técnico no capitalismo:

A grande massa de escritos dos economistas sobre o tema […] tanto teóricos, quanto empíricos se atém ao papel das mudanças técnicas na redução de custos. Essa redução ocorre, porque o desenvolvimento tecnológico aplicado à produção permite que com a mesma quantidade de capital investido se produza um volume maior de um dado produto.

Apesar do discurso de muitos burgueses que se autointitulam beneficentes e que afirmam estarem doando suas fortunas desinteressadamente para financiar, por exemplo, a conquista do espaço, é um fato que o investimento em ciência e tecnologia é feito somente se um retorno econômico puder ser vislumbrado, direta ou ainda indiretamente, como no caso da pesquisa militar, esfera na qual, além do lucrativo mercado internacional, a supremacia possibilita o domínio de recursos e mercados. Se os problemas tecnológicos para se enviar um foguete à lua não fossem exatamente os mesmos que os para se enviar uma ogiva nuclear até outro continente através de uma trajetória balística, certamente a corrida espacial não teria a importância que teve durante a corrida armamentista nuclear no contexto da Guerra Fria, como demonstra o fato notável de nenhum ser humano ter pisado na lua desde 1972, mesmo ano em que os Estados Unidos e a União Soviética iniciaram as tratativas que levaram à assinatura do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), banindo novos desenvolvimentos na área e estabilizando o balanço de forças entre estas potências. Já o ressurgimento da indústria espacial na segunda década do século XXI está ligado à possibilidade de mineração de asteroides e a uma nova corrida armamentista no contexto do fim da hegemonia estadunidense1.

Isso não significa, como simplificam em demasia muitos economistas, algo notado por Rosenberg, que tudo que possa ser dito sobre o papel econômico da tecnologia esteja reduzido à sua capacidade de aumentar a produtividade e reduzir os custos de produção. Ele destaca um segundo efeito do avanço tecnológico tão importante quanto o de reduzir custos: a introdução de novos produtos e o aprimoramento de sua qualidade. Para este autor, “excluir do progresso técnico a inovação de produtos, especialmente quando se consideram longos períodos históricos, equivale a encenar Hamlet sem o príncipe” (ROSENBERG, 2006, p. 19). Isso complexifica sobremaneira a análise que deixa de ser apenas quantitativa e limitada a produtos que permanecem inalterados.

Entretanto, não se pode desconhecer uma distinção fundamental entre esses dois efeitos do progresso tecnológico na economia: enquanto a redução de custos é algo ativamente buscado, o surgimento de novos ramos e produtos é algo que não pode ser previsto a priori dada a própria natureza da pesquisa científica. Assumimos que o desconhecido se comporta de forma similar ao conhecido, senão a ciência não seria possível, contudo, é justamente pelo fato do desconhecido não ser igual ao conhecido que a ciência é necessária e as surpresas inevitáveis. Se a inovação buscada pode ser antevista na consciência humana é porque a descoberta que permite essa projeção já foi feita no passado e o trabalho agora é de viabilizá-la tornando seus custos factíveis. Quem poderia prever que os professores Andre Geim e Kostya Novosolev da Universidade de Manchester descobririam o grafeno ao usarem fita adesiva para remover flocos de uma placa de grafite? Por outro lado, se não fosse óbvia a importância econômica da pesquisa em torno dos novos materiais, esta universidade não financiaria um Centro de Mesociência e Nanotecnologia onde ambos trabalhavam juntos. O fato é que hoje os laboratórios ao redor do mundo estão explorando o enorme potencial do grafeno, o material mais fino, leve, resistente e maleável conhecido até o momento.

Os resultados da pesquisa em ciência, seja ela de base ou aplicada, transpostos à produção podem resultar em novos produtos e também em novos processos. Kuznets observou que o fato de uma inovação dizer respeito a um produto ou a um processo é algo que depende muito da perspectiva que se adota. Rosenberg concorda e reforça:

As inovações de processo envolvem tipicamente equipamentos ou maquinário novos, nos quais tais inovações estão corporificadas; esse maquinário ou tais equipamentos constituem uma inovação de produto, do ponto de vista da firma que os produz (ROSENBERG, 2006, p. 19).

O autor cita o exemplo do conversor Bessemer, uma espécie de fornalha refratária que permite a produção em massa de aço, reduzindo enormemente o custo da produção. Esta era uma inovação de processo para os fabricantes de ferro e aço, mas uma inovação de produto para os fornecedores de equipamentos para a indústria.

Salvo algumas exceções, como uma nova forma de se fazer um cálculo de cabeça, que pode ser considerado uma tecnologia mental ou uma inovação organizacional, uma nova tecnologia está normalmente associada à construção de uma nova máquina ou à modificação de uma já existente. Mesmo novos programas de computador, que podem ser descritos como uma sequência de instruções lógicas que, por definição, poderiam ser rodados em qualquer máquina universal, na prática, exigem, por conta dos impactos dos limites de recursos nos tempos de execução, uma renovação constante dos equipamentos. Desta forma, a ubiquidade do sistema de máquinas quando falamos em desenvolvimento tecnológico e produção industrial permite que seu processo de conformação nos sirva de roteiro para entendermos as transformações históricas que o desenvolvimento tecnológico operou no capitalismo, a partir do entendimento, na esfera da produção de valor, da máquina como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, como propões Bevilaqua (2015), mas, também, na esfera da produção de valores de uso, da “história da formação dos órgãos produtivos do homem social”, como reificação do corpo humano (MARX, 1996, l.1, v. 2, p. 8).

A construção das máquinas se torna o elo por excelência entre a ciência e a produção, pois é “a análise originada diretamente da ciência e a aplicação de leis mecânicas e químicas que possibilitam à máquina executar o mesmo trabalho anteriormente executado pelo trabalhador” (MARX, 2011, p. 587).

1Em 13 de junho de 2002, durante o governo Bush, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado ABM.

A Revolução Neolítica

A Revolução Neolítica

Caral, local da Revolução Neolítica nos Andes

Se a produção de ferramentas, marco inicial do Paleolítico, está na base do processo de conformação biológica da nossa espécie, e, posteriormente, o surgimento do comportamento simbólico inicia a fase superior desse período, na qual o Homo sapiens (e os extintos neandertais) passam a exibir comportamentos que os distinguem de todos os seus ancestrais chamados de arcaicos, o Neolítico, iniciado há cerca de 11 mil anos, corresponde ao aparecimento da sociedade civil e da política, após a agricultura e a domesticação dos animais levarem à produção de excedente.

A transformação radical na relação entre o homem e a natureza não se limitou, desta vez, à manipulação de objetos inanimados como pedras, metais e madeira: os seres humanos passaram a dominar outras espécies biológicas, principalmente ao controlarem o ciclo reprodutivo dessas. A agricultura é a face mais saliente deste processo, desenvolvida independentemente em pelo menos sete regiões distintas do globo:

Na região do Crescente Fértil foram encontradas evidências de cultivos, entre outros, de cevada, trigo e linho; na China, ocorreu a domesticação do milhete e do arroz; na África foi domesticado o café, o ensete e o khat; em Papua Nova Guiné, o inhame e outros tubérculos; na América Central, iniciou-se a plantação da abóbora, do milho e do feijão; nos Andes foram encontrados vestígios da plantação de batatas e da quinoa, enquanto que no litoral do Peru, na região próxima à antiga cidade de Caral (primeira grande cidade descoberta no continente) se destaca a domesticação do algodão; e, finalmente na Amazônia, na região do alto rio Madeira, berço do tronco linguístico Tupi, foram domesticadas a mandioca, a pupunha, a pimenta, o amendoim, o abacaxi e o guaraná (BEVILAQUA, 2015, p. 249).

Com os dados que dispunha à época, principalmente com base no trabalho de Morgan, Engels analisou em detalhes este processo em sua obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Conforme o título evidencia, a revolução tecnológica agrícola e pastoril teve profundas implicações na organização da sociedade humana, sendo destruídas as comunidades baseadas nas gens, conjuntos de famílias, em prol de uma nova organização social baseada na divisão dos seres humanos em classes sociais, definidas a partir da produção e apropriação dos valores de usos.

Além das plantas, neste período foram também domesticados os animais que além de serem meio de transporte criaram o intercâmbio entre distintas comunidades:

Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs, couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez, o intercâmbio regular de produtos (ENGELS, 1964, p. 57).

Completando a domesticação das outras espécies, os seres humanos também passaram a cultivar fungos e bactérias, o que nos deu controle sobre o processo de fermentação e da produção de cremes azedos.

O desenvolvimento tecnológico “tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção”, o que tornou, pela primeira vez conveniente amealhar força de trabalho. Logo, “os prisioneiros foram transformados em escravos”. Assim, “da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados” (ENGELS, 1964, p. 57).

No campo da organização humana estão dadas as condições para o surgimento do Estado, em um processo de dissolução da antiga organização gentílica através da consolidação do

o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário à gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia. (ENGELS, 1964, p. 36).

Com mais pessoas liberadas da produção de alimentos, outros ramos da produção floresceram. Engels chama atenção para dois particularmente importantes “o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de minerais e o trabalho com metais fundidos” (ENGELS, 1964, p. 57). Esta lista pode ser estendida com outras invenções que causaram profundos impactos: remos e velas que transformaram a navegação, rodas que permitiram a construção de carros, moedas e outros objetos usados como meio de troca, mós para triturar grãos. Isso sem contar a invenção que talvez seja a mais importante para o desenvolvimento ulterior da ciência: a invenção das proto-escritas, os sistemas simbólicos que antecederam a escrita propriamente dita. É o caso dos símbolos Jihau, um conjunto de 16 signos que foram gravados em carapaças de tartarugas encontradas na província de Henan, na China e datadas como tendo sido feitas no sétimo milênio antes da nossa era, assim como é o caso, também, dos Símbolos Vinča, gravados em artefatos arqueológicos encontrados nos Balcãs e produzidos no sexto milênio antes da nossa era.

Ainda que os pesquisadores não considerem esses símbolos como um sistema acabado de escrita, pois, apesar dos mesmos serem constituídos de ideogramas ou pictogramas que carregam informação, provavelmente não codificavam nenhuma linguagem natural, estes são as bases para o surgimento, na Idade do Bronze, período imediatamente posterior ao Neolítico, da escrita, o que ocorreu de forma independente entre os sumérios, os egípcios, os chineses e os olmecas. Só então a codificação de enunciados passou a ser feita de forma que um leitor pudesse reconstruí-los, com um certo grau de precisão, sem precisar conhecer antecipadamente o contexto no qual o texto foi produzido, diferentemente do caso das proto-escritas, que, a exemplo das pinturas rupestres do Paleolítico, provavelmente nunca serão decifradas.

O desenvolvimento da escrita, compreendido de forma mais global desde as primeiras manifestações simbólicas, permitiu que a transmissão de conhecimento pudesse atingir um patamar muito superior ao da mera oralidade, tornando-se, a partir da imprensa de Gutemberg, uma condição sine qua non para o surgimento da revolução científica.

Concluindo esta digressão sobre o Neolítico, cabe notar sua característica de elo entre a revolução paleolítica que o antecedeu em alguns milhões de anos, e a revolução industrial que o sucedeu apenas 10 mil anos depois. Se este pode ser considerado um processo similar à primeira, no que diz respeito ao papel do desenvolvimento tecnológico na transformação do processo de trabalho e em todas as mudanças que isso acarretou para a existência humana, por outro lado, o surgimento das classes sociais que teve como pré-requisito o acúmulo de excedentes, lança luz sobre a transformação que a revolução industrial pode suscitar, tornando anacrônicas as classes sociais através de uma nova qualidade na produção de excedentes. Contudo, nunca é demais frisar que tanto o surgimento das classes sociais no Neolítico quanto a possibilidade de sua superação no capitalismo, modo de produção que simplificou e elevou esse antagonismo ao paroxismo, não se deram por uma simples consequência mecânica do desenvolvimento das forças produtivas, mas sim mediados por conflituosas relações humanas, logo sociais e políticas, batizadas de luta de classes pelos socialistas do século XIX.

Justamente o fato do desenvolvimento das forças produtivas ser ao mesmo tempo causa e consequência das relações sociais é que permite reunificar, na análise do modo de produção capitalista, o processo de produção de valor de uso e o processo de produção de valor, não apenas das mercadorias em geral, mas também da produção científica em especial.

O paleolítico e nossa criação a partir do trabalho

O paleolítico e nossa criação a partir do trabalho

Podemos afirmar que o Paleolítico, periodização utilizada para definir a pré-história tecnológica humana, antecede e está na base do surgimento da nossa espécie biológica, resultado de milhões de anos de uso de ferramentas pelos primatas. Desta forma, nem a comunidade humana, nem sua sucessora neolítica, a sociedade de classes, como complexos dinâmicos de relações sociais entre homens e mulheres, podem ser compreendidas se nos restringirmos apenas à história do homo sapiens, a partir do processo de especiação que nos distinguiu de algumas variações do homo erectus há centenas de milhares de anos.

Há algumas décadas, as descobertas paleontológicas identificam em hominídios já extintos, do gênero Homo ou não e que fazem ou não parte da nossa linha de ascendência, características que até então julgávamos únicas à nossa espécie, como a capacidade de confeccionar ferramentas. O desenvolvimento cognitivo deses hominídios arcaicos vem sendo revisto à luz do papel destas ferramentas no trabalho e da necessária capacidade teleológica para se projetar e construir estas extensões do nosso corpo.

Existe abundante registro do uso de ferramentas no paleolítico inferior, iniciado há 2,6 milhões de anos atrás, um período 40 vezes mais antigo que as primeiras pinturas rupestres. Mais recentemente, o uso comprovado de ferramentas recuou cerca de 700 mil anos do previamente estipulado, com a publicação, em maio de 2015, na capa da Revista Nature, do artigo de Sonia Harmand e seus colegas, no qual relatam a descoberta de ferramentas líticas no sítio Lomekwi, no Quênia, com 3,3 milhões de anos. Como se tratam de artefatos dificilmente diferenciáveis aos olhos leigos de outros produzidos por fenômenos naturais, a ciência arqueológica superou diversas polêmicas aprimorando as técnicas necessárias para distingui-los e datá-los. Por isso, existe pouca disputa em torno dos achados de Lomekwi: a datação das cinzas vulcânicas no depósito de sedimentos no qual foi encontrado o conjunto de instrumentos, conformado por lascas, núcleos (de onde as lascas são separadas) e percutores (pedras usadas de forma ativa ou passiva como bigorna), foi obtida de uma forma muita precisa, usando-se técnicas de datação paleomagnéticas. Como o padrão de sedimentação dessas cinzas ao longo dos milênios é influenciado pela localização dos polos magnéticos, e as inversões destes ao longo da história são conhecidas e datadas, torna-se possível utilizá-las como um marcador de tempo.

Destarte, mesmo com a recente descoberta do fóssil de uma mandíbula no lago Ledi-Geraru, na Etiópia, cuja datação radiométrica o converteu no exemplar mais antigo de um representante do gênero Homo descoberto até o momento, com 2,8 milhões de anos (VILLMOARE, 2015), tornou-se difícil contra-argumentar a visão de que a produção de ferramentas precede o gênerodo qual fazemos parte em centenas de milhares de anos, remontando aos Australopithecus.

Este é o gênero de Lucy, uma das únicas descobertas de um fóssil de hominídio completo com esta idade, ao qual se junta agora um segundo esqueleto, revelado em dezembro de 2017, o Little Foot. Estas descobertas, nas quais foi preservada a anatomia completa dos esqueletos daqueles indivíduos, são extremamente raras, muitas espécies são descritas com base em fragmentos de poucos centímetros. A descoberta de Lucy em 1974 e a descoberta, no mesmo ano, de pegadas que australopitecíneos deixaram sobre cinzas vulcânicas nos permitiram estabelecer sem controvérsia que essas eram criaturas bípedes.

Conforme Gould descreveu em seu ensaio Posture maketh the man, os australopitecíneos que produziram essas ferramentas não se encaixavam nas noções preconcebidas de como “um elo perdido deveria se parecer”, o que levou, por muito tempo, vários cientistas a “se recusarem a aceitá-los como membros bona fide da nossa linhagem” (GOULD, 1995B). Eles esperavam uma transformação harmoniosa e linear do primata ao homem, impulsionada por um aumento da inteligência. O fato é que os australopitecíneos, com uma caixa craniana de volume similar à dos chimpanzés, com cerca de 400 cm³, já adotavam uma postura totalmente ereta ao caminhar, e fabricavam ferramentas1.

A maior parcela do nosso desenvolvimento cerebral, até chegar aos nossos atuais 1450 cm³ de volume da caixa craniana, ocorreu após a fase dos australopitecíneos. Por isso não faz sentindo a visão de que nossa evolução foi dirigida por um aumento do cérebro, como acreditava o famoso embriologista Karl Ernst von Baer, que escreveu em 1828 “A postura ereta é apenas a consequência do desenvolvimento do cérebro” (BAER apud GOULD, 1995B).

Essa posição, em uma época em que as evidências acumuladas não podiam ainda decidir a questão, era puramente ideológica, afinal, com exceção dos neandertais, os primeiros fósseis de hominídios foram descritos apenas no final do século XIX. Isso foi percebido por Engels, que afirmou:

Em face de todas essas imagens [leis, religião, arte, etc.], que aparentavam, em primeiro lugar, ser produtos da mente e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas da mão trabalhadora recuaram para o segundo plano, ainda porque a mente que planejava o trabalho era capaz, em um estágio muito precoce no desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a ter o trabalho que havia sido planejado feito por outras mãos do que as suas próprias. Todo o mérito do rápido avanço da civilização foi atribuído à mente, ao desenvolvimento e atividade do cérebro. Os homens se acostumaram a explicar suas ações como decorrentes do pensamento em vez de suas necessidades (que de qualquer modo são refletidas e percebidas na mente); e, com o passar do tempo, emergiu essa visão mundial idealista que, especialmente desde a queda do mundo da antiguidade, dominou a mente dos homens. Ainda os governa ao ponto de que até mesmo os cientistas naturais mais materialistas da escola darwiniana ainda não conseguiram formar uma ideia clara da origem do homem, porque, sob essa influência ideológica, não reconhecem o papel desempenhado nesta pelo trabalho (ENGELS, 2010A, p. 452, tradução nossa).

Até o momento, as evidências que temos sugerem que o bipedismo é anterior à fabricação de ferramentas e nos garantem que esta é muito anterior ao processo de crescimento do volume ocupado pelo cérebro. Hoje, com o registro fóssil enriquecido com milhares de espécimes, aceita-se que “o cérebro não pode começar a crescer no vácuo. Um primeiro ímpeto deve ser propiciado por uma alteração no modo de vida que coloque um bônus seletivo forte na inteligência. A postura ereta libera as mãos para a locomoção e para a manipulação” (GOULD, 1995B).

Engels, enriquece assim a observação de Anaximandro de que o ser humano é mais inteligente que o restante dos animais porque têm mãos, o que, como vimos, foi posteriormente comprovado pelo registro fóssil:

a mão não é apenas o órgão do trabalho, é também produto do trabalho. Somente através do trabalho, por adaptação a operações sempre novas, (…) pelo emprego sempre renovado desses avanços herdados em novas e cada vez mais complicadas operações, pode a mão humana atingir o alto grau de perfeição necessário para conjurar as imagens de um Raphael, as estátuas de um Thorwaldsen, a música de um Paganini. (ENGELS, 2010A, p. 454, tradução nossa)

Engels também adiantou o argumento, retomado recentemente, ainda que sem menção ao seu nome, pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, em livro publicado em 2016, intitulado A vantagem humana: como nosso cérebro se tornou superpoderoso‎, em torno do impacto da mudança de dieta no desenvolvimento do cérebro, passando a incluir proteínas animais com a invenção das ferramentas de caça e também, mais recentemente, com a aplicação do fogo sobre os alimentos:

A dieta carnívora, no entanto, teve o seu maior efeito no cérebro, que passou a receber um fluxo muito mais rico dos materiais necessários para sua alimentação e desenvolvimento, permitindo-o portanto, se desenvolver de forma mais rápida e perfeita de geração em geração (…) [o domínio do fogo] encurtou ainda mais o processo digestivo, pois levava à boca comida que já estava meio digerida (ENGELS, 2010A, p. 455, tradução nossa).

A transição do Australopithecus ao gênero Homo, cujas espécies mais antigas que conhecemos até o momento são o Homo habilis e o Homo rudolfensis (ainda que alguns classifiquem o último como uma variação do primeiro), está associada à tradição de indústria lítica Olduvaiense, a mais antiga conhecida até a recente descoberta de Lomekwi. São ferramentas simples, também conhecidas como seixos talhados. A fabricação de uma ferramenta olduvaiense era obtida através de golpes feitos com uma pedra esférica (normalmente seixos obtidos nos cursos d’água) contra a ponta de uma outra pedra, que poderia ser de quartzo, basalto ou obsidiana, o que a fratura formando uma face afiada em um processo conhecido como redução lítica.

Durante o paleolítico, que durou 2,5 milhões de anos, o gênero Homo se diversificou e floresceram diversas espécies de hominídeos. Neste ínterim, ocorreram novas revoluções tecnológicas, como a produção de ferramentas líticas mais complexas, conhecidas como indústria acheuliana, que remonta a pelo menos 1,7 milhão de anos, sendo caracterizada por certo tipo de utensílios bifaces de pedra, no qual uma grande lasca era produzida e depois afiada com lascamentos menores e mais precisos, produzindo machadinhas. Estas foram produzidas pelo próprio Homo habilis (que significa homem habilidoso), mas de forma mais desenvolvida pelo Homo ergaster (que significa homem trabalhador) e pelo Homo erectus.

Além da indústria lítica, o paleolítico, principalmente sua fase superior, viu muitas outras transformações tecnológicas que permitiram que o Homo sapiens, e em alguns casos seus ancestrais, se espalhassem por todo o globo. Conforme listou Bevilaqua (2015, p. 248), são desse período as descobertas e invenções da “linguagem, o domínio sobre o fogo, a construção de abrigos, as roupas, as lanças, os arcos, as balsas, as redes, as representações pictóricas, os pigmentos, as flautas, a cerâmica, a domesticação dos cães, o curtimento do couro, os primeiros calendários, entre outras”.

Quais dessas descobertas foram feitas pelo Homo sapiens, e quais foram feitas pelas espécies que o antecederam ainda está em aberto. Uma nova datação realizada em crostas de carbonato que cobrem pinturas rupestres em pelo menos três cavernas da Espanha, forçaram a reavaliação acerca do excepcionalismo de nossa espécie em trabalhar com linguagem simbólica, ao indicarem que estas manifestações artísticas foram produzidas há mais de 64 mil anos, ou seja, quando os neandertais viviam naquela região, mas pelo menos 20 mil anos antes da data na qual acredita-se que nossa espécie adentrou o continente europeu. Para os autores:

A arte na caverna compreende principalmente pinturas pretas e vermelhas e inclui a representação de diversos animais, signos lineares, formas geométricas, estêncil de mãos e impressões de mãos. Destarte, os Neandertais possuíam um comportamento simbólico mais rico do que previamente pensado. (HOFFMANN, 2018).

Hoje se sabe, através da análise genética, que os neandertais, assim como outra espécie de homínidos, os denisovanos2, se miscigenaram com os Homo sapiens, o que faz deles nossos ancestrais e indica a existência de uma complexa interação, e até de colaboração cultural entre essas diferentes espécies (CALLAWAY, 2016). Com isso foi alterada a percepção acerca da complexidade cultural dos neandertais, antes vistos como intelectualmente inferiores aos Homo sapiens, o que era tido como determinante para sua extinção em um processo de competição por recursos entre ambas as espécies.

Atualmente, já não se pode afirmar com segurança quem, se os neandertais3 ou os humanos de então, tinha o comportamento mais complexo e maior capacidade cognitiva. Na verdade, apesar dos humanos anatomicamente modernos, esqueleticamente idênticos a nós, terem surgido há 200 mil anos, até o Paleolítico Superior, há 50 mil anos, período no qual inicia-se a chamada Revolução Criativa, à qual corresponde uma grande diversificação de artefatos encontrados, nosso comportamento não parece ter se diferenciado muito dos humanos arcaicos.

Enquanto o desenvolvimento ideológico mais complexo é exclusividade do gênero Homo, com alguns comportamentos remontando ao Homo erectus, historicamente, como vimos, a produção de ferramentas não é exclusividade deste gênero, o que é corroborado por observações contemporâneas entre as espécies de primatas não humanos atualmente existentes. A lacuna pelo fato de sermos a única espécie extante de uma árvore de diversos hominídeos pode ser cotejada com a descrição da utilização de ferramentas por outras espécies de primatas não hominídeos.

Além da utilização de ferramentas pelos chimpanzés, estudada desde o trabalho pioneiro de Jane Goodall há mais de 50 anos, sabe-se hoje que, pelo menos os macacos pregos dentre os primatas do Novo Mundo, como são conhecidas as espécies pertencentes ao clado que aglutina os símios do continente americano, também utilizam ferramentas de pedra como observou e publicou a equipe dos pesquisadores Eduardo Ottoni, Tiago Falótico e Patrícia Izar do Instituto de Psicologia da USP. As ferramentas líticas são ubíquas entre os macacos-pregos, todos os grupos observados as utilizam para quebrar nozes, que são colocadas sobre uma pedra grande usada como bigorna e golpeadas com pedras menores, dando-lhe acesso à parte comestível.

Em uma publicação recente na Nature, em conjunto com acadêmicos de Oxford, os pesquisadores da USP documentaram inclusive a produção de pedras lascadas pelos macacos-pregos, o que, na palavra dos autores “adiciona uma nova dimensão às interpretações do registro paleolítico humano, a possível função das primeiras ferramentas líticas e os requisitos cognitivos para a emergência da lascagem de pedras” (PROFFITT, 2016). Marx foi um dos primeiros a chamar atenção para a relevância desse tipo de estudo: “A mesma importância que as relíquias de ossos têm para o conhecimento da organização das espécies de animais extintas têm também as relíquias de meios de trabalho para a compreensão de formações socioeconômicas extintas” (MARX, 1988, Livro I, p. 329).

Apesar da sofisticação deste comportamento, que envolve a secagem das nozes para amolecê-las, diferentemente da tradição olduvaiense dos humanos arcaicos, esses macacos não alteram essas pedras, nem utilizam as lascas, que são descartadas como subproduto deste processo. Aqui reside uma diferença, no uso de ferramentas entre os seres humanos e os demais animais, que não passou despercebida por Marx, que notou que “O uso e a criação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies de animais, é uma característica específica do processo de trabalho humano, razão pela qual Franklin define o homem como ‘a toolmaking animal‘, um animal que faz ferramentas” (MARX, 1988, Livro I, p. 329). O fato dos macacos, assim como outras espécies, utilizarem elementos de seu meio para sobrevivência, não faz dessa utilização um tipo de criação de ferramentas, no mesmo sentido que esta atividade tem para os seres humanos. A ferramenta é resultado de desenvolvimento e de uma organização social, que também tem a ver com o caráter teleológico dessa criação. É necessário um gênero social para que as ferramentas se desenvolvam como produto do processo de objetivação humana através do trabalho e, mais tarde, surja a divisão do trabalho.

Mas, esses dados nos servem de indícios de que o uso de ferramentas em geral pelos hominídios possa ser mais antigo que os registros que temos. Ainda mais se considerarmos que outros materiais como madeira e osso também eram transformados em ferramentas, mas, como estes não se conservam com a mesma facilidade que as rochas, as ferramentas líticas são apenas as mais antigas das quais temos registro arqueológico.

Chimpanzés, assim como os orangotangos, bonobos e gorilas, utilizam abundantemente ferramentas feitas de plantas, o que segundo Michael Haslam da Universidade de Oxford, líder do projeto de arqueologia primata, talvez tenha a ver com o fato de que “plantas são ubíquas nos habitats dos primatas, mas as pedras não”. (BARRAS, 2015). A descoberta de ferramentas produzidas por chimpanzés nos sítios Panin na Costa do Marfim, datadas em 4.300 anos, ou seja, anterior à sedentarização agrícola humana nesta região, “sugerem que a cultura material percussiva poderia ter sido herdada de um clado comum entre os chimpanzés e os seres humanos” (MERCADER, 2007). De acordo com esta hipótese, que ainda é bastante discutível, o uso de ferramentas deveria ser então anterior a 7 milhões de anos atrás quando viveu o nosso provável ancestral em comum com os chimpanzés . Isso reforça a proposta de inclusão do gênero Pan, que inclui os chimpanzés e os bonobos na tribo4 dos Hominini. Contudo, pelas observações realizadas, nem todas as comunidades de chimpanzés utilizam ferramentas líticas, apenas algumas comunidades do ocidente da África, o que é um argumento para que esse uso tenha se originado após a separação destas populações de chimpanzé das populações do restante do continente, algo muito mais recente, ocorrido entre 1 milhão e 500 mil anos atrás.

Essa digressão acerca da conformação da nossa espécie, e do nosso papel e do trabalho como categoria ontocriativa do nosso ser social tem como objetivo chamar atenção para a contribuição de Marx e Engels na superação do ponto de vista idealista e religioso para o qual o nosso intelecto comprovaria sermos produto de um criador consciente, que nos fez a sua imagem e semelhança. Essa visão, apesar dos reparos feitos pelos defensores do livre-arbítrio, invariavelmente leva à ideia de povo escolhido, a tribo de Davi, e à necessária subordinação dos outros povos aos representantes de deus na terra.

Outra visão surgida no século XIX, que também se contrapôs à visão religiosa, mas que, a exemplo desta, serviu para justificar os interesses das classes dominantes é a ideia de seleção natural como base de explicação da dominação do homem pelo homem, a partir da interpretação racista de Francis Galton do trabalho de seu primo Charles Darwin. Novamente esta visão é explicada e superada pelo marxismo, que frisa o caráter social da existência humana e da construção da igualdade, a partir da luta histórica pela superação das classes sociais, origem das desigualdades históricas entre os seres humanos.

1Os chimpanzés apesar de poderem se sustentar sobre os dois membros inferiores são considerados quadrúpedes, pois normalmente caminham apoiando-se nos nós dos dedos.

2Dos denisovanos conhecemos apenas alguns dentes, pedaços de mandíbula e uma falange de um dedo encontrados em uma caverna na Sibéria. Contudo, desta falange, que foi destruída no processo, pôde ser extraído DNA extremamente bem preservado, cujo sequenciamento surpreendeu o mundo, ao apontar que o indivíduo não era nem homo sapiens e nem neandertal e que alguns de seus genes estão presentes nas modernas populações de melanésios, aborígenes australianos e mesmo nos tibetanos (regiões distantes da Sibéria), o que demonstra que a história de nossa especiação, e nossa relação com outras espécies próximas é muito mais complexa do que previamente imaginado.

3Curiosamente os neandertais são os hominídios com o maior volume de caixa craniana, 1.740cm³. O segundo lugar é do homo sapiens com cerca de 1.500cm³.

4Tribo aqui se refere ao nível taxonômico da classificação de Lineu que agrupa diferentes gêneros de uma mesma família, ou subfamília.