Crise do capital, crise na ciência

Crise do capital, crise na ciência

No Capítulo XII de o Capital, intitulado Maquinaria e Grande Indústria, Marx explica como o surgimento do sistema de máquinas converteu a ciência em uma força produtiva social. A máquina, cujo constante desenvolvimento requer o avanço da ciência, deve ser entendida como uma categoria econômica, subsumida ao conceito de capital (BEVILAQUA, 2015, p. 240). Como capital constante, ela é armazenadora de trabalho vivo para o próximo ciclo produtivo, mas também é uma forma de “baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valia” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 5).

A Revolução Industrial, ao possibilitar um descolamento entre o tempo de trabalho empregado e a quantidade de mercadorias criadas, através de um brutal ganho de produtividade, impulsionou a expansão das relações capitalistas por todo o planeta e impactou a manifestação concreta de cada uma das leis de seu sistema, sendo um dos fatores que permitiu o surgimento do imperialismo. Segundo descreveu Lênin, o “enorme incremento da indústria e o processo notavelmente rápido de concentração da produção em empresas cada vez maiores constituem uma das particularidades mais características do capitalismo” (LENIN, 1984). Porém, ao entrar em sua terceira fase, a Revolução Científico-Técnica, através da automação da produção, torna infinitesimal o quantum de valor-trabalho de cada produto. O papel da maquinaria na expansão das relações capitalistas é transformado, exaurindo-se o impulso anterior, e sua adoção em todo o planeta passa a representar um entrave para a acumulação global de capital.

Marx, no Caderno VII dos Grundrisse, manuscritos econômicos de 1857 e 1858, já havia desvelado este caráter contraditório do desenvolvimento da relação capital:

A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o fator decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder cuja poderosa efetividade, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção (p.615).

A redução do tempo de trabalho a um mínimo é produto da aplicação das inovações tecnológicas à produção. Algumas linhas mais adiante, o fundador do materialismo histórico explica como o desenvolvimento tecnológico, que tornou possível a grande indústria, leva, com o tempo, à erosão do paradigma do valor, processo que compele o modo de produção capitalista à crise.

O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. […] O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. (p.942).

Bevilaqua, em sua investigação acerca da atual crise econômica mundial, defende que a acepção de crise que mais contribui para a análise do desenvolvimento histórico contemporâneo é a que se depreende da leitura dos Grundrisse. Isso porque a contradição que ela expressa abarca o coração do sistema do capital, o próprio processo de valorização, sobre o qual se funda toda a estrutura econômica e social. Desta forma, esta é a formulação mais abrangente por ser capaz de articular os diferentes usos da ideia de crise em O Capital. Como descreve esse autor:

Todas estas interpretações da crise em Marx sofreram uma significativa modificação com a redescoberta dos Grundrisse de 1858-59. Este estudo de Marx, considerado um esboço da sua obra magna, desenvolve o conceito de capital em geral articulado pela categoria valor e, necessariamente, desenvolve também a categoria crise enquanto momento que expressa sua negação. Neste sentido, apresenta uma concepção do movimento do valor ao seu antivalor mediado por uma série histórica de momentos de negação do valor que permeiam o movimento do substrato material do conceito de capital em geral até a transformação do mesmo, real e conceitual, ou objetiva e subjetiva. Esta concepção permite uma compreensão da unidade conceitual da crise presente em O Capital, que pode ser traduzida como a dialética de limites e barreiras, de leis gerais e leis específicas que conformam a relação capital-trabalho. (BEVILAQUA, 2015, p. 197)

Esta formulação de Marx, esparsa em seus escritos, não obstante presente, também pode ser derivada de seu método, tanto é que teve elementos redescobertos na formulação da Lei da Acumulação e do Colapso de Henryk Grossmann, uma contribuição feita em uma época em que os Grundrisse ainda não haviam sido publicados, mas na qual já existia um importante debate sobre o tema, que partia dos esquemas de reprodução apresentados no Livro II de O Capital (BEVILAQUA, 2015, p. 105 e 212). Para Grossmann, ao analisar a composição valor do capital em seus sucessivos circuitos, o crescimento proporcionalmente maior do capital constante adicional com relação ao restante do capital, como salários, faz com que seja colocada em xeque a parcela da mais-valia destinada ao capitalista, uma parte intrínseca das relações de poder que sustentam este sistema. Em seu modelo, um dos principais fatores que dinamizam o colapso é o aumento da composição orgânica do capital, efeito da aplicação da ciência no processo produtivo (GROSSMANN, 2004).

Essa ideia já estava presente no capítulo sobre a Lei Geral da Acumulação Capitalista em O Capital, no conceito de composição orgânica do capital, que relaciona a composição valor e a composição técnica do capital. Seu incremento indica o processo de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto (MARX, 2010, v. 35, pos. 1706) (BEVILAQUA, 2015, p. 224 – 225), principalmente a partir da introdução da maquinaria, como Marx chama atenção neste trecho dos Grundrisse:

Como vimos, a tendência necessária do capital é o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do trabalho necessário. A efetivação dessa tendência é a transformação do meio de trabalho em maquinaria. Na maquinaria, o trabalho objetivado se contrapõe materialmente ao trabalho vivo como o poder dominante e como subsunção ativa deste a si. (MARX, 2011, p. 931).

A ciência assume um papel central no processo produtivo. Sua aplicação na indústria, através das inovações tecnológicas, leva à automação da produção material, o que transforma qualitativamente o caráter do trabalho e da classe operária. O tempo socialmente necessário à produção da reprodução da vida material torna-se insignificante diante da colossal produtividade decorrente do desenvolvimento das forças produtivas, uma contradição que passa a comprometer o padrão de acumulação deste modo de produção.

O trabalho de Theotonio dos Santos (1983, 1987) em torno da Revolução Científico-Técnica descreve como a inovação é incorporada no processo de produção de valor, concentrando-se, cada vez mais, nos departamentos de Pesquisa e Design dos monopólios, que se agigantam quando comparados com a pesquisa básica, circunscrita às universidades. Isso se deve ao papel que a ciência vai adquirindo no centro da produção e à dinâmica própria da rotação do capital empregado em inovação.

Paralelamente, a precificação da própria produção científica torna-se um problema candente para a manutenção da apropriação privada do valor fundado no tempo de trabalho, e do reconhecimento deste como o equivalente geral dos intercâmbios da sociedade, em torno do qual orbitam todas as outras medidas de valor. Todavia, o conhecimento humano não pode ser mensurado com base no tempo socialmente necessário para produzi-lo, porque sua reprodução requer um tempo praticamente insignificante. Marx já havia adiantado nas Teorias sobre a mais-valia o argumento que hoje embasa movimentos como o do Software Livre e o do Copyleft:

O produto do trabalho intelectual – a ciência – é sempre muito inferior a seu valor, porque o tempo de trabalho necessário para sua reprodução não guarda proporção alguma com o [trabalho] exigido para sua criação original. Por exemplo, qualquer jovem no colégio pode aprender em uma hora a teoria dos binômios (MARX, 1980, v.1, p. 327, tradução nossa)

Surge daí a batalha pela posse do conhecimento coletivo da humanidade e de sua manipulação através de diferentes formas de controle como as patentes, a desigualdade de condições, a restrição ao acesso de dados, roubo de cérebros, etc.

Podemos afirmar que, paulatinamente, a ciência se embrenhou da lógica da reprodução do capital, da sua reprodução como valor e da apropriação da criação alheia através da fraude. Estabeleceu-se o contrato de servidão da ciência ao sistema do capital, algo análogo ao risco para o qual Francis Bacon alertara em sua obra O progresso do conhecimento, de 1605. Aí já aparece claramente a ideia de que os interesses dos detentores da ciência condicionam sua produção, conduzindo-a ao erro:

Porque, tal e como agora se transmitem os conhecimentos, há uma espécie de contrato de erro entre o transmissor e o receptor: pois o que transmite conhecimento deseja fazê-lo da maneira que seja mais bem acreditado, e não mais bem examinado; e o que o recebe, mais deseja satisfação imediata que indagação antecipada, e assim antes não duvidar que não errar, fazendo o afã de glória com que o autor não descubra sua fraqueza, e a indolência com que o discípulo não conheça sua força (BACON, 2007. p. 203).