A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

Um século e meio após os estudos históricos de Marx e Engels, podemos perceber que se a primeira fase da Revolução Industrial, entre 1735 e 1840, é a parteira de um novo modo de produção, e uma segunda fase desta, entre 1848 e 19451, ao incorporar novas fontes de energia térmica à produção, é responsável pela expansão do sistema capitalista por todo o globo, sua terceira fase, iniciada no pós-guerra, e da qual somos contemporâneos, com a revolução dos mecanismos de transmissão e controle, a cibernética, ao permitir a automação da produção, leva o sistema capitalista a uma crise que se apresenta insuperável dentro dos marcos do sistema (BEVILAQUA, 2015).

Como vimos anteriormente, se não podemos responsabilizar diretamente a produção científica, entendida em seu sentido mais estreito como corpo de conhecimento sistematizado e promovido a partir de instituições oficiais (universidades, periódicos, conferências, etc), pelo impulso inicial que levou à industrialização, também não podemos descartar o poder explicativo neste contexto de um uso mais abrangente do termo ciência, considerado como uma nova atitude paradigmática frente a realidade material, experimentação empírica e autoridade da hierarquia religiosa.

Entretanto, com o tempo, essa distinção vai sendo apagada e o desenvolvimento da técnica

não é mais um resultado de avanços pragmáticos e empíricos na maneira de produzir. A ciência assumiu o papel de dirigente do desenvolvimento tecnológico, os ramos de produção se convertem em campos de atividades criados e controlados por ela. A ciência se converte em uma força produtiva direta (SANTOS, 1983, p. 9)

A economia passa a direcionar de forma mais contundente o conjunto da pesquisa científica, gigantescos ramos da indústria que não existiam são criados a partir de descobertas científicas e passam a atrair para si, em uma espécie de ciclo virtuoso, mais trabalho de pesquisa, como exemplificam o caso da indústria química, da aviação, da informática, entre outros. O trabalho científico sai da periferia e se coloca no centro do processo produtivo, como sua força mais importante.

Santos (1983) notou que a produção científica tornou-se parte essencial da acumulação. Os custos em pesquisa e desenvolvimento são parte do custo final do produto e os laboratórios e centros de pesquisa se transferem para dentro das empresas. A atividade científica é agora vista como um investimento que se incorpora ao capital constante e ao variável: entra nos custos de produção (SANTOS, 1983, p. 61-62).

Santos (1983) propõe uma ampliação do esquema original D-M-D de Marx, que, ao incorporar a atividade científica, pode ser reescrito da seguinte forma:

_________CI ……. I ____________
D – M
_________CP …… M’ – D – M’ – CPI … MI – DI

Na qual CI é o capital investido em tecnologia, o que permite que um capital, acumulado anteriormente, torne-se CPI, ou capital investido em um novo produto, resultado da pesquisa realizada (SANTOS, 1983, p. 76-81).

Por sua vez, a ciência se converte em tecnociência, que para ser realizada requer, cada vez mais, a invocação de uma parcela gigantesca de trabalho acumulado na forma de laboratórios, instrumentos científicos e capital humano (trabalho pretérito em educação e formação). A partir deste ponto não bastam mais bons mecânicos, inventores, artesãos, autodidatas, homens e mulheres práticos, esses personagens que protagonizaram o desenvolvimento tecnológico na época da manufatura e nos primórdios da indústria.

O processo empírico, baseado na tentativa e erro, adquire um novo significado dentro do contexto da produção científica industrial. Em seu diário, Thomas Edison relata ter testado 1.600 diferentes fibras até chegar no carbono e posteriormente no tungstênio como materiais ideias para a fabricação do filamento de suas lâmpadas. Mas, não se pode tomar essa anotação como evidência de que ele fez tudo isso sozinho, sua empresa contava com dezenas de pesquisadores trabalhando em tempo integral no desenvolvimento de seus produtos.

Talvez Edison seja o melhor arquétipo desta transição, com a qual a produção científica passou a ser quantificada pelo número de patentes registradas. Mesmo que o sistema de patentes já existisse há séculos, e que já tivessem ocorridas ferozes disputas legais em torno dessas, como a experimentada por James Watt que patenteou o motor a vapor em 1796, Edson acumulou 1.093 patentes em seu nome, apenas nos Estados Unidos, e utilizou-se destas para se ascender à classe burguesa.

Santos (1983) nos mostra como, no pós-guerra, esse processo de entrelaçamento entre a ciência e o capital se estreita ainda mais. Em seu artigo Mudança Tecnológica e Economia Mundial, apresentado aos seus alunos, mas ainda não publicado,este autor chama atenção para o fato de que:

A questão da integração da ciência como força produtiva é parte indispensável do processo de produção, pode ser medida através da intensidade dos gastos com pesquisa e desenvolvimento em relação ao produto de cada setor econômico (SANTOS, 2002, manuscritos).

Neste texto, Santos apresenta os dados do informe sobre ciência e tecnologia da OECD colhidos em fins década de 1980 e, com base neles, demonstra como estes investimentos cresceram maciçamente depois da Segunda Guerra Mundial. Para se ter uma ideia de como essa tendência continuou evoluindo, em 2016, o total mundial desses gastos foi de cerca de 1,15 trilhão de dólares, ou seja, mais de 2% do PIB mundial. Estão aí englobados os gastos com pesquisa básica, aplicada e em desenvolvimento (ou seja inovações baseadas em tecnologia já existente).

Cada vez mais, as pesquisas de ponta em diversas áreas dependem de projetos multibilionários, todos eles com forte participação estatal. O Grande Colisor de Hádrons levou uma década para ser construído e consumiu 7,5 bilhões de euros até 2010. O orçamento anual para sua operação consome cerca de 1 bilhão de dólares por ano. O Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser, que permitiu a observação de ondas gravitacionais custou 1,1 bilhão de dólares em 40 anos. No Projeto Genoma Humano foram dispendidos, até o sequenciamento concluído em 2003, 2,7 bilhões de dólares. São pesquisas que envolvem ciência básica, mas que também levaram ao desenvolvimento de diversas tecnologias para se viabilizarem, e resultam na criação de diversos novos produtos.

Nenhum destes projetos citados acima custou tanto quanto a Estação Espacial Internacional, cerca de 150 bilhões de dólares até 2015, divididos entre Estados Unidos, Rússia, Japão, Canadá e a Agência Espacial Europeia, composta por 13 países deste continente, quase 50% a mais que o projeto Apollo, que custou 23 bilhões de dólares em 1973, o que equivale a 107 bilhões de dólares se atualizarmos o valor para o parâmetro de 2016.

Podemos considerar como percursor desses megaprojetos de produção científica em escala industrial, o projeto Manhattan, que permitiu o controle sobre a fissão nuclear no final da Segunda Guerra, ao custo de 2 bilhões de dólares de então, o que hoje equivaleria a mais de 22 bilhões de dólares. A maioria destes projetos está ligada diretamente à área militar, sendo que o Manhattan foi desenvolvido no curso da Segunda Guerra, e permitiu a construção da bomba atômica, o que comprova o importante papel que este conflito e, posteriormente a corrida armamentista da guerra fria, desempenharam no crescimento dos investimentos em ciência.

Todos esses projetos foram financiados principalmente com recursos públicos e envolveram centenas, ou mesmo milhares, de pesquisadores trabalhando conjuntamente. Mas, a principal destinação dos investimentos foi em obras de infraestrutura, compra de equipamentos, gastos administrativos, entre outros custos indiretos.

O projeto Manhattan, por exemplo, chegou a empregar cerca de 130 mil pessoas, a maioria delas operários da construção civil, mas, neste e nos demais megaprojetos, foram significativas as contratações de trabalhadores especializados e qualificados, principalmente na produção dos equipamentos.

Na segunda metade do século XX, os gastos do setor privado com ciência e tecnologia seguiram o mesmo caminho de crescimento acelerado do investimento público, ainda que mais voltados para a pesquisa aplicada e para a inovação, onde o retorno é mais imediato.

A estruturação os centros de pesquisa e design dentro das grandes empresas começa no início do século XX, o que faz permite que esses assumam parte de um espaço que era até então exclusivo das universidades. Em 1925, com a emergência da telefonia como um negócio mundial, quatro mil cientistas e engenheiros foram contratados pelo recém-criado Bell Telephone Laboratories. Ao longo de sua história, esta instituição privada, mas que sempre recebeu bolsas da DARPA, agência de pesquisa em defesa dos EUA, hospedou 8 trabalhos que receberam o Nobel, além de ter sido lá que revolucionárias tecnologias foram desenvolvidas, como o transistor, o laser, o sistema operacional Unix e a linguagem de programação C. Desde 2016 este centro de pesquisa é de propriedade da gigante de telecomunicações finlandesa Nokia.

A participação da empresa Celera no Projeto do Genoma Humano e mais recentemente as mudanças relacionadas à indústria espacial nos Estados Unidos, com a NASA passando a conviver com outras fabricantes de foguetes, como a Space X e a Blue Origin, demonstram o controle cada vez mais direto do setor privado sobre essas áreas estratégicas.

1Por limites de tempo, não pudemos tratar especificamente da segunda fase da Revolução Industrial, período fundamental na história do sistema capitalista, pois compreende sua expansão por todo o globo e o surgimento do imperialismo. Sugerimos a leitura de BEVILAQUA (2015, p. 264-270) para uma interessante análise sobre como os novos problemas surgidos da necessidade de compreensão do mundo como um processo global levou a uma crise nos paradigmas científicos positivistas e ao surgimento das ciências de transformação como a Geologia e a Biologia Evolutiva.

As Revoluções do Neolítico, do Paleolítico e Industrial

As Revoluções do Neolítico, do Paleolítico e Industrial

Como já afirmamos, a identidade entre revolução industrial e capitalismo não permite afirmar que os avanços técnicos tenham sido inaugurados com este modo de produção. Como lembra Santos, um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas já é um pré-requisito para o surgimento deste:

O modo de produção capitalista surge num estágio bastante elevado da luta do homem para submeter a natureza. De fato, este modo de produção surge como consequência do alto desenvolvimento das forças produtivas devido à expansão das indústrias e do comércio mundial (SANTOS, 1983, p. 11)

Esta correspondência entre revolução industrial e capitalismo pressupõe apenas “um novo patamar da relação entre o homem e a natureza, de forma análoga à objetivação do corpo humano nas ferramentas produzidas desde o paleolítico” (BEVILAQUA, 2015, p. 251).

Engels, ao mesmo tempo que reconhece a importância da revolução industrial e seu significado dentro da luta de classes, logo seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais, demonstra também o outro lado do processo de ruptura, a continuidade da mudança tecnológica ao longo da história da humanidade, inclusive no período que antecedeu a conformação das classes sociais, remontando à constituição da nossa espécie, como explica o título da sua obra, inacabada e publicada postumamente, O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, na qual podemos ler que “[o trabalho] é a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem”. (ENGELS, 2010A, p. 452). Na linha de Engels, Álvaro Vieira Pinto, em obra também publicada postumamente, O Conceito de Tecnologia, critica a expressão “era tecnológica” para descrever o período contemporâneo. Para ele, se tratava de uma construção ideológica apologética do sistema, para “embriagar a consciência das massas, fazendo-as crer que tem a felicidade de viver nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade” (PINTO, 2005, p. 41). Isso em um mundo no qual o domínio da tecnologia encontra-se nos centros imperialistas, cabendo ao mundo periférico a condição de paciente receptor das inovações técnicas. Em sua formulação, Pinto nota que no processo de sua constituição, os seres humanos adquirem a capacidade de projetar (teleologia), ao mesmo tempo em que convertem em seres sociais, algo necessário à produção do que foi projetado. Acompanha-o Frigotto (2006), para quem “o trabalho é a categoria ‘ontocriativa’ da vida humana, e o conhecimento, a ciência, a técnica e a tecnologia e a própria cultura são mediações produzidas pelo trabalho na relação entre os seres humanos e os meios de vida”.

Não é possível falar em trabalho em falar sem desenvolvimento da técnica, afinal, como também nota Engels (2010a, p. 452), “O trabalho começa com a elaboração de instrumentos”, ou seja, também podemos definir o ser humano por sua capacidade tecnológica.

Para ROSENBERG (2006, p. 17),

[…] num sentido fundamental, a história do progresso técnico é inseparável da história da própria civilização, na medida em que trata dos esforços da humanidade para aumentar a produtividade sob uma gama extremamente diversificada de condições ambientais.

Desta forma, a Revolução Industrial pode ser colocada em uma perspectiva ainda maior, de conformação e transformação da existência humana a partir do trabalho, perfilando-se ao lado de dois outros grandes processos revolucionários muitas vezes olvidados, as revoluções do Paleolítico e do Neolítico.

A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação

A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação

Com efeito, ao assumirmos o método de Marx, consideramos que causa e consequência de um processo histórico não existem separadamente ou relacionadas apenas em caminhos de mão única. Desta forma, a crise na produção científica, que pode ser vista como uma consequência da crise econômica, produto, por exemplo, de cortes de investimento no setor, como destacam diversas matérias de jornal, é, ao mesmo tempo, uma das causas da mesma. O método com o qual Marx analisa o capitalismo permite pensar este complexo fenômeno em suas múltiplas determinações, o que leva à definição de uma Crise Orgânica do Capital. Com a conversão da ciência na principal força produtiva, as contradições inerentes à Lei Geral da Acumulação Capitalista (MARX, 1988) levam à erosão do paradigma do valor, conforme antecipou Marx nos Grundrisse, o que emperra a acumulação de capital e, consequentemente, coloca a própria relação-capital em cheque. Além disso, para entender qualquer movimento dialético e a forma como se articula uma unidade de seus contrários, deve-se dar a devida importância à escolha das categorias que nos possibilitam compreender o real significado deste processo.

O ponto de partida que nos permitirá transcender a aparência deste fenômeno é a argumentação apresentada na tese A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação de Aluisio Pampolha Bevilaqua (2015). Em seu trabalho, o autor defende que a crise do capital, momento de autonegação dialética da própria relação-capital, que por sua vez é a relação social dominante da formação econômica-social atual, generaliza-se para todas as esferas da sociedade e se expressa particularmente na produção científica mundial como uma crise de paradigmas. Em trabalho anterior, intitulado A Crise do Capital em Marx e suas implicações nos Paradigmas da Educação, o autor já mostrara como as categorias produção, ciência e educação encontram-se subsumidas à categoria capital através dos conceitos de crise, paradigma e pedagogia. Durante a crise, a ciência, cativa do capital e convertida em mais uma de suas manifestações, precisa desesperadamente ser mensurada como valor de troca, o que entra em choque com seu estatuto de conhecimento organizado e validado através de sua confrontação com a realidade material (na prática). Ele mostra como o caráter dessa crise é responsável pelo descompasso entre os objetivos postulados pela comunidade científica para seu trabalho e os resultados destes percebidos pela sociedade. Trata-se de um processo que se retroalimenta, pois a incorporação da ciência como investimento na produção acentua a erosão do paradigma do valor, logo agrava a crise econômica ao prejudicar a acumulação capitalista de trabalho vivo (BEVILAQUA, 2015, p. 9 e 356) (BEVILAQUA, 2011, p. 235).

Da mesma forma, toma-se como base a tese de Theotonio dos Santos, também referenciada no trabalho de Bevilaqua, que demonstra o impacto da Revolução Científico-Técnica, cujo início pode ser situado após a Segunda Guerra Mundial, quando a ciência passou a ser, cada vez mais, vista como investimento. Este processo, que pode ser classificado como a terceira fase da Revolução Industrial e que deriva na crescente automação da produção, é raiz de profundas transformações, ainda em curso, que apontam para os limites históricos do modo de produção baseado na apropriação privada da riqueza social (SANTOS, 1983, p. 52 e 247;1987, p.275).