A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A especificidade do processo de trabalho no modo de produção capitalista é que o processo de produção de valores de uso, objetos destinados à satisfação das necessidades humanas, conforma uma unidade dialética com o processo de produção de valor, mensurado através do quantum de trabalho social contido em cada mercadoria. Enquanto que a produção de valores de uso só é possível pelo caráter concreto do trabalho, o processo de produção de valor só faz sentido ao considerar-se o caráter abstrato do trabalho, justamente o que permite que as mais variadas atividades produtivas humanas possam ser comparadas e seus resultados intercambiados no mercado.

Esta contradição histórica desenvolvida pela relação-capital, manifesta no duplo caráter do trabalho (concreto e abstrato) e que se expressa na ambiguidade da forma mercadoria (valor de uso e valor de troca) também se manifesta na produção científica:

Ao mesmo tempo em que ela é um momento do acúmulo de conhecimento humano, que pode ser traduzido em uma aplicação concreta (seu valor de uso), ela também é uma indústria, um departamento da produção capitalista, que só pode ter sua dinâmica explicada pelo processo de valorização do capital (seu valor de troca) (BEVILAQUA, 2015, p. 295).

Conforme observa Marx no fragmento dos Grundrisse dedicado às máquinas, “A invenção torna-se então um negócio e a aplicação da ciência à própria produção imediata, um critério que a determina e solicita” (MARX, 2011, p. 587).

Reconhecer a mercantilização da ciência e sua submissão à lógica da relação capital no processo de produção de valor não neutraliza o papel revolucionário do desenvolvimento tecnológico que media e transforma a relação entre os seres humanos, e também entre estes e a natureza.

O processo de reprodução de capital não pode ser examinado satisfatoriamente apenas pelo lado do valor de troca, por isso Marx abordou ambos os aspectos da mercadoria e do trabalho em sua análise. É na vitalidade dessa contradição, e no movimento que resulta da unidade dos contrários, que residem os efeitos que permitem vincular a produção científica à crise orgânica do capital.

Santos (1983) destaca o fato de que as mudanças tecnológicas afetam o caráter útil e concreto dos bens. São produzidas na vida material e não no plano mercantil. São um acúmulo da experiência produtiva do homem, do desenvolvimento da ciência e independem do modo de produção. O sistema não pode criar um conhecimento que não se submete à própria lógica do conhecimento. Isso não significa atribuir uma neutralidade à tecnologia. O capitalismo impulsiona as mudanças que favorecem o aumento da taxa de lucro. (SANTOS, 1983, p. 237-250)

A partir da lógica da análise econômica, Rosenberg (2006, p. 18) refere-se ao debate em torno do papel econômico desempenhado pelo progresso científico-técnico no capitalismo:

A grande massa de escritos dos economistas sobre o tema […] tanto teóricos, quanto empíricos se atém ao papel das mudanças técnicas na redução de custos. Essa redução ocorre, porque o desenvolvimento tecnológico aplicado à produção permite que com a mesma quantidade de capital investido se produza um volume maior de um dado produto.

Apesar do discurso de muitos burgueses que se autointitulam beneficentes e que afirmam estarem doando suas fortunas desinteressadamente para financiar, por exemplo, a conquista do espaço, é um fato que o investimento em ciência e tecnologia é feito somente se um retorno econômico puder ser vislumbrado, direta ou ainda indiretamente, como no caso da pesquisa militar, esfera na qual, além do lucrativo mercado internacional, a supremacia possibilita o domínio de recursos e mercados. Se os problemas tecnológicos para se enviar um foguete à lua não fossem exatamente os mesmos que os para se enviar uma ogiva nuclear até outro continente através de uma trajetória balística, certamente a corrida espacial não teria a importância que teve durante a corrida armamentista nuclear no contexto da Guerra Fria, como demonstra o fato notável de nenhum ser humano ter pisado na lua desde 1972, mesmo ano em que os Estados Unidos e a União Soviética iniciaram as tratativas que levaram à assinatura do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), banindo novos desenvolvimentos na área e estabilizando o balanço de forças entre estas potências. Já o ressurgimento da indústria espacial na segunda década do século XXI está ligado à possibilidade de mineração de asteroides e a uma nova corrida armamentista no contexto do fim da hegemonia estadunidense1.

Isso não significa, como simplificam em demasia muitos economistas, algo notado por Rosenberg, que tudo que possa ser dito sobre o papel econômico da tecnologia esteja reduzido à sua capacidade de aumentar a produtividade e reduzir os custos de produção. Ele destaca um segundo efeito do avanço tecnológico tão importante quanto o de reduzir custos: a introdução de novos produtos e o aprimoramento de sua qualidade. Para este autor, “excluir do progresso técnico a inovação de produtos, especialmente quando se consideram longos períodos históricos, equivale a encenar Hamlet sem o príncipe” (ROSENBERG, 2006, p. 19). Isso complexifica sobremaneira a análise que deixa de ser apenas quantitativa e limitada a produtos que permanecem inalterados.

Entretanto, não se pode desconhecer uma distinção fundamental entre esses dois efeitos do progresso tecnológico na economia: enquanto a redução de custos é algo ativamente buscado, o surgimento de novos ramos e produtos é algo que não pode ser previsto a priori dada a própria natureza da pesquisa científica. Assumimos que o desconhecido se comporta de forma similar ao conhecido, senão a ciência não seria possível, contudo, é justamente pelo fato do desconhecido não ser igual ao conhecido que a ciência é necessária e as surpresas inevitáveis. Se a inovação buscada pode ser antevista na consciência humana é porque a descoberta que permite essa projeção já foi feita no passado e o trabalho agora é de viabilizá-la tornando seus custos factíveis. Quem poderia prever que os professores Andre Geim e Kostya Novosolev da Universidade de Manchester descobririam o grafeno ao usarem fita adesiva para remover flocos de uma placa de grafite? Por outro lado, se não fosse óbvia a importância econômica da pesquisa em torno dos novos materiais, esta universidade não financiaria um Centro de Mesociência e Nanotecnologia onde ambos trabalhavam juntos. O fato é que hoje os laboratórios ao redor do mundo estão explorando o enorme potencial do grafeno, o material mais fino, leve, resistente e maleável conhecido até o momento.

Os resultados da pesquisa em ciência, seja ela de base ou aplicada, transpostos à produção podem resultar em novos produtos e também em novos processos. Kuznets observou que o fato de uma inovação dizer respeito a um produto ou a um processo é algo que depende muito da perspectiva que se adota. Rosenberg concorda e reforça:

As inovações de processo envolvem tipicamente equipamentos ou maquinário novos, nos quais tais inovações estão corporificadas; esse maquinário ou tais equipamentos constituem uma inovação de produto, do ponto de vista da firma que os produz (ROSENBERG, 2006, p. 19).

O autor cita o exemplo do conversor Bessemer, uma espécie de fornalha refratária que permite a produção em massa de aço, reduzindo enormemente o custo da produção. Esta era uma inovação de processo para os fabricantes de ferro e aço, mas uma inovação de produto para os fornecedores de equipamentos para a indústria.

Salvo algumas exceções, como uma nova forma de se fazer um cálculo de cabeça, que pode ser considerado uma tecnologia mental ou uma inovação organizacional, uma nova tecnologia está normalmente associada à construção de uma nova máquina ou à modificação de uma já existente. Mesmo novos programas de computador, que podem ser descritos como uma sequência de instruções lógicas que, por definição, poderiam ser rodados em qualquer máquina universal, na prática, exigem, por conta dos impactos dos limites de recursos nos tempos de execução, uma renovação constante dos equipamentos. Desta forma, a ubiquidade do sistema de máquinas quando falamos em desenvolvimento tecnológico e produção industrial permite que seu processo de conformação nos sirva de roteiro para entendermos as transformações históricas que o desenvolvimento tecnológico operou no capitalismo, a partir do entendimento, na esfera da produção de valor, da máquina como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, como propões Bevilaqua (2015), mas, também, na esfera da produção de valores de uso, da “história da formação dos órgãos produtivos do homem social”, como reificação do corpo humano (MARX, 1996, l.1, v. 2, p. 8).

A construção das máquinas se torna o elo por excelência entre a ciência e a produção, pois é “a análise originada diretamente da ciência e a aplicação de leis mecânicas e químicas que possibilitam à máquina executar o mesmo trabalho anteriormente executado pelo trabalhador” (MARX, 2011, p. 587).

1Em 13 de junho de 2002, durante o governo Bush, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado ABM.