A solução das publicações de livre acesso e o novo problema das predatórias

A solução das publicações de livre acesso e o novo problema das predatórias

Respondendo aos problemas do processo de publicação de artigos científicos, surgiu um novo tipo de periódico científico conhecido como publicação de acesso aberto. É o caso, por exemplo, da biblioteca de periódicos do projeto PLOS, que além de promover o livre acesso, não endossa os fatores de impacto como métricas úteis para avaliar a performance de artigos individuais. Para sustentar esse modelo, as publicações deste projeto cobram entre US$1.450 e U$2.900 dos autores por artigo, com a ressalva de que a impossibilidade do autor em pagar não impede a publicação, que é revisada por pares. Este modelo logo se revelou um sucesso e experimentou um crescimento exponencial. Um estudo estimou um salto de 19.500 artigos em publicações de acesso livre no ano 2000 para 191.850 em 2009, um aumento de 1.000% (LAAKSO, 2011).

Contudo, entre essas publicações de acesso livre, surgiram diversas tidas como predatórias, ou seja, dirigidas por grupos interessados apenas em recolher as taxas cobradas aos autores, sem oferecer os serviços editoriais e de publicação associados aos periódicos legítimos. O processo de revisão por pares dessas revistas muitas vezes se revelaram totalmente fraudulentos com o aceite chegando algumas vezes poucas horas após a submissão e correspondente pagamento da taxa. Jeffrey Beall, bibliotecário e professor-associado da Universidade de Colorado, defensor do modelo tradicional de publicação e um crítico do acesso livre, manteve durante muitos anos uma lista, na qual, em dezembro de 2016, constavam 1163 editoras responsáveis por publicações tidas como predatórias. Ele estimou que cerca de 25% dos periódicos de livre acesso tinham essas características. Similarmente, ele também notou o surgimento de conferências predatórias, organizadas por grupos interessados apenas na cobrança das altas taxas de inscrição (BEALL, 2017).

Beall foi duramente criticado por aqueles que consideram que ele, em nome da defesa do modelo tradicional, excedeu-se nas generalizações e caluniou publicações sérias, misturando-as com outras fraudulentas. Em janeiro de 2017, a lista de Beall e a página pessoal dele foram retiradas do site da Universidade do Colorado por conta das múltiplas notificações legais e ameaças de processo.

Iniciativa recente associada à de Beall foi realizada no Brasil pelos pesquisadores Paulo Inácio Prado, do Instituto de Biociências da USP, Roberto André Kraenkel, do Instituto de Física Teórica da Unesp, e Renato Mendes Coutinho, do Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC. Eles criaram um banco de dados com o título de Preda Qualis, no qual cruzaram a lista de publicações tidas como predatórias com as listadas no Qualis, chegando a um total de 485 periódicos, sendo que 67% classificados nos estratos A e B, em, pelo menos, uma área de conhecimento. Eles chegaram à conclusão de que, ainda que a

baixa proporção de títulos potencialmente predatórios no QUALIS indica que o uso destes periódicos não é prática comum nos programas de pós-graduação brasileiros (…) há uma grande vulnerabilidade do sistema de avaliação da CAPES à invasão por este tipo de publicação (PRADO, P, 2017).

O fato é que a adoção de um ou outro dos modelos de publicação opostos, per si, não muda em nada a natureza mercantil da produção científica e sua apropriação, de uma forma ou de outra, pela lógica de autovalorização do capital, da mesma forma que o cooperativismo, o software livre, os alimentos orgânicos, os mutirões de habitação e tantos outros movimentos que se originaram de uma perspectiva anticapitalista, acabaram sendo usados pelo capital, de uma forma ou de outra, para oxigenar seu corpo moribundo. Sem uma transição para outro modo de produção, que resulte em outro fundamento sobre o qual se organize a sociedade, é ingênuo pensarmos na possibilidade de mediarmos ou mesmo impedirmos que a ciência seja imbuída da lógica mercantil.

Publicar, publicar, lucrar

Publicar, publicar, lucrar

O produtivismo na academia, que se expande por todo o globo, impõe-se pelo entrelaçamento da concessão de financiamento com a adoção de métricas de avaliação majoritariamente quantitativas e enviesadas.

No Brasil, esta pressão é responsável, por exemplo, pelo fato de que ocupemos, no ranking entre os diferentes países, a 12ª posição em quantidade de artigos indexados, enquanto que o número de citações a esses tenha caído para a 27ª posição. Como bem coloca Keneth de Cargo Jr, professor do Departamento de Planejamento e Administração em Saúde do Centro Biomédico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro:

Espalham-se subterfúgios para incrementar a quantidade de artigos e capítulos publicados, e mesmo de citações: a produção em série de artigos sem maior interesse ou inovação, ainda que fundamentalmente corretos, a multiplicação do número de autores para cada texto sem que se considere adequadamente a atribuição de autoria, a distribuição de conteúdos entre diversas publicações (conhecida como publicação salame) e a criação de verdadeiros clubes de citação mútua são fenômenos há muito conhecidos na literatura mundial e que começam a se manifestar em nosso meio (DE CAMARGO JR, 2013).

Além das questões do financiamento condicionado a métricas quantitativas, a própria atividade de publicação se converteu em um ramo altamente lucrativo, com o acesso a artigos custando dezenas ou mesmo centenas de dólares. A mercantilização da ciência subsumida ao capital restringe a circulação das ideias científicas pelas cobranças efetuadas aos leitores dessas publicações.

Para Waters, há que se combater “a ideia de que as editoras universitárias deveriam se transformar em ‘centros lucrativos’ e contribuir para o orçamento geral da universidade” (WATERS, 2004, p. 2 tradução nossa). Esta teratologia, restringir a divulgação de resultados científicos com o intuito de lucro, utilizando-se do dissimulado argumento de valorização do trabalho do autor, foi alvo do questionamento de John Perry Barlow, um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation:

É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um trabalho criativo decente durante 5000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovado pelo Parlamento Britânico. Sófocles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach – todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram (BARLOW, 2000).

Em 2004, os governos do Brasil e da Argentina foram responsáveis por promover A Declaração de Genebra Sobre o Futuro da OMPI, no marco do desenvolvimento de uma agenda para a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que afirma que “o mundo está enfrentando uma crise na governança do conhecimento, tecnologia e cultura” pelo acesso desigual a remédios e educação, pelas práticas anticompetitivas que levam à concentração de propriedade, impedindo o acesso ao domínio público por conta de interesses privados (DECLARATION, 2004). Na Europa uma iniciativa semelhante resultou na Declaração de Berlim sobre Acesso Livre ao Conhecimento nas Ciências e Humanidades que resultou em 2003 de uma conferência organizada pela Sociedade Max Plank (DECLARATION, 2003).

A Crise da Responsabilidade Acadêmica e a Crise do produtivismo

A Crise da Responsabilidade Acadêmica e a Crise do produtivismo

Do ponto de vista da sociologia, uma outra voz que se soma à percepção de uma crise generalizada na produção científica é a de Lindsay Waters, editor de humanidades da Harvard University Press, uma dais mais importantes editoras acadêmicas dos Estados Unidos.

Em seu provocativo ensaio Inimigos da Esperança Publicar, Perecer e o Eclipse da Erudição, ele traça um complexo cenário de deterioração da produção do saber, referindo-se à “crise da responsabilidade (accountability) acadêmica1”, “eclipse do valor”, “crise das monografias”, crise de “superprodução”, “crise generalizada da avaliação” (judgment) (WATERS, 2004, passim, tradução nossa). Para ele, a erosão do sistema de publicações com o boom de produção, caracterizado por um forte crescimento no número de artigos publicados a partir dos anos 1960, resulta de uma cultura de hiperinflação (WATERS, 2004, p. 22, tradução nossa).

O “problema é basear o mandato na quantidade de publicações, publicações que poucos leem” (WATERS, 2004, p. 7, tradução nossa). “Nos últimos 30 anos, passamos de vender um mínimo de 1.250 livros de cada título de humanidades para 275 livros” (WATERS, 2004, p. 16, tradução nossa).

Em sua ácida crítica ao modelo vigente, Waters alerta para o momento em “que o mercado se torne nossa prisão e que o valor do livro seja minado” (WATERS, 2004, p. 4, tradução nossa). Também chama atenção para o fato de que este problema não se restringe apenas à área das humanidades (WATERS, 2004, p. 18, tradução nossa) e diagnostica:

Adentramos a Zona Cinzenta (Twilight Zone) da pesquisa acadêmica, e agora a demanda por produtividade está levando à produção de muito mais nonsense. Em tempos como estes, pesquisadores inescrupulosos e confusos realizam falsas assertivas que guardam aparência de interessantíssimas, mas também inverificáveis assertivas. Podemos ver em toda parte ao redor de nós o eclipse do valor em uma cultura de hiperinflação. Editores de periódicos, especialmente, estão percebendo que eles não têm o tempo necessário para avaliar porque eles precisam manter a linha de montagem em movimento. (WATERS, 2004, p. 22, tradução nossa)

É neste contexto que o paradigma de publicar ou perecer leva ao que é chamado de ciência salame, quando se busca fatiar os resultados de uma pesquisa na menor unidade publicável, o menor quantum possível de conhecimento em uma publicação, de forma a inflar o número de publicações, maximizando o ranking do pesquisador de acordo com as métricas quantitativas. As publicações circulam em um ritmo cada vez maior, contudo carregando em si cada vez menos resultados inovadores cientificamente relevantes.

Fica evidente que esta velocidade de circulação das publicações não corresponde aos interesses do acúmulo de conhecimento e sim à própria velocidade de rotação do capital, que precisa ser ainda mais acelerada quando a crise se manifesta. Até neste aspecto, de uma crise na qual o sistema tem que girar a uma velocidade cada vez maior, pois a cada ciclo o valor incorporado é menor, a ciência da ciência se assemelha à do capital em geral.

Esse descompasso levou em 2011 um grupo de pesquisadores alemães, entre eles o neurocientista Jonas Obleser, da Sociedade Max Planck, a publicar o Manifesto Ciência Lenta, no qual relembram que:

A ciência precisa de tempo para pensar. A ciência precisa de tempo para ler e tempo para falhar. A ciência nem sempre sabe sobre o que pode estar neste momento. A ciência se desenvolve de forma instável, com movimentos bruscos e saltos imprevisíveis para a frente – ao mesmo tempo, no entanto, arrasta-se em uma escala de tempo muito lenta (SLOW SCIENCE MANIFESTO, 2010, tradução nossa).

1 O termo em inglês accountability pode ser apenas parcialmente traduzido para responsabilidade, pois o conceito traz outras cargas semânticas como prestação de contas, ação ética, transparência e credibilidade.

O significado do experimento científico

O significado do experimento científico

Contrariando a visão dos autores que desestimam a importância da replicabilidade dos experimentos, argumentamos que a mesma é uma exigência lógica que não apenas constitui um princípio do método científico, mas é uma exigência da filosofia materialista. Ela parte do pressuposto de que cada fenômeno tem a sua verdade material, de uma forma muito semelhante à qual este conceito é utilizado na ciência do direito. Se existe sangue derramado, este pode, ou não, ser o indício de que este local foi o cenário de um homicídio. Mas, de alguma forma o sangue apareceu ali, e deve-se buscar uma explicação material para isto.

Um dos primeiros cientistas a tratar do problema da reprodutibilidade dos experimentos abertamente foi o químico inglês Robert Boyle em obra publicada em 1675. Este autor trabalha com uma analogia entre a investigação científica e a investigação criminal:

Pois, embora o depoimento de uma única testemunha não seja suficiente para provar a culpa do acusado de assassinato; já o depoimento de duas testemunhas, mesmo que de igual crédito (…) normalmente basta para provar a culpa de um homem; porque é considerado razoável supor que, embora cada testemunho individual seja provável, a concorrência destas probabilidades, (o que na razão deve ser atribuído à verdade do que eles tendem a provar conjuntamente) podem equivaler a uma certeza moral, isto é, uma certeza, que possa garantir que o juiz proceda à sentença de morte contra a parte indiciada. (BOYLE apud SHAPIN 1985).

Como vimos, alguns pesquisadores tendem a buscar a explicação para este fenômeno se restringindo apenas a questões técnicas. Um exemplo, a recente pesquisa que responsabiliza a qualidade dos anticorpos empregados nos laboratórios (que os consomem de produtores especializados) pela verificada tendência à irreprodutibilidade dos experimentos na área das pesquisas imunológicas. Segundo este estudo, os cientistas falharam em não antever a necessidade de se certificar a qualidade de um dado insumo (BAKER, 2015).

Conhecer alegações como a de Bissel permitem uma aproximação ao real problema, que trataremos ao longo desta dissertação, nem tanto por seus argumentos, ao estilo de “a mão da boleira e não a receita impede o bolo de solar”, mas por sua motivação declarada: ela chama atenção para a suposta injustiça envolvida na interrupção de pesquisas milionárias, seja para as carreiras envolvidas, seja para os interesses associados aos financiamentos.

Contrariamente a esta proposição, argumentamos nesta dissertação que a quantidade de estudos irreplicáveis aponta a um problema mais essencial que não se trata simplesmente de uma guerra de egos, ou por recursos, ou mesmo um amplo charlatanismo entre os cientistas. Aventamos que, se aplicarmos a dialética da quantidade como acumulação de evidências de uma transformação na qualidade, na essência da crise de reprodutibilidade/replicabilidade pode estar uma crise de paradigmas na ciência, relacionada por sua vez à crise orgânica do capital.