O quão revolucionária foi a Revolução Industrial?

O quão revolucionária foi a Revolução Industrial?

Se a existência da Revolução Industrial é, hoje, quiça, um dos grandes pontos de concordância entre historiadores e economistas, o significado desse processo e o estabelecimento dos seus marcos temporais são objeto das mais diversas interpretações. Hobsbawn, por exemplo, considera que este “não foi um episódio com um princípio e um fim. Não tem sentido perguntar quando se ‘completou’, pois sua essência foi a de que a mudança revolucionária se tornou norma deste então. Ela ainda prossegue” (HOBSBAWM, 1997). O termo Révolution Industrielle, como nota GRIFFIN, foi muito provavelmente cunhado “na França, no início do século dezenove, por economistas políticos impressionados com os tremendos avanços econômicos e sociais que haviam sido recentemente obtidos do outro lado do Canal”. Tratava-se de uma analogia com a Revolução Francesa, da qual a Revolução Industrial seria a contraparte econômica, antecedendo-a em cerca de meio século (GRIFFIN, 2007, p. ???). A correspondência entre ambas, e também com a revolução filosófica alemã, foi analisada por Engels, autor responsável pelo desenvolvimento pleno do termo Revolução Industrial em uma categoria científica, em sua obra seminal A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra:

A revolução industrial teve para a Inglaterra a mesma importância que a revolução política teve para a França e filosófica para a Alemanha a, e a distância que separa a Inglaterra de 1760 da Inglaterra de 1844 é pelo menos tão grande quanto aquela que separa a França do Antigo Regime da França da Revolução de Julho. O fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês (ENGELS, 2008).

Este livro de Engels, escrito entre 1842 e 1844 durante sua estada em Manchester e publicado em Leipzig, foi traduzido do alemão ao inglês apenas em 1885, para uma edição estadunidense publicada no ano seguinte em Nova Iorque. O termo Revolução Industrial só passou a ser amplamente usado na língua do país em que este processo se originou após a publicação póstuma das Aulas sobre a Revolução Industrial Inglesa do historiador e reformador social Arnold Toynbee (GRIFFIN, 2013). Não se sabe se Toynbee conhecia o trabalho de Engels, pois ele morre antes da tradução inglesa do mesmo, mas seu relato guarda semelhanças com o trabalho do filósofo prussiano, inclusive na denúncia das mazelas dos trabalhadores pobres resultantes deste processo.

A não utilização do termo Revolução Industrial pelos acadêmicos britânicos do século XIX não quer dizer que estes não tenham expressado por diversas vezes a consciência da superioridade do desenvolvimento industrial da Inglaterra, que em meados do século XIX era indubitavelmente a nação mais rica do mundo. A Grande Exposição de 1851 no Palácio de Cristal, erguido para este fim no Hyde Park, que reuniu mais de 6 milhões de pessoas durante os poucos mais de cinco meses em que esteve aberta, foi um ode ao desenvolvimento industrial dos países convidados, mas mormente uma apologia à supremacia industrial britânica.

Segundo GRIFFIN, a partir do fim do século XIX, como um pêndulo, a posição dos acadêmicos sobre este fenômeno histórico oscilou entre a afirmação e o revisionismo do mesmo. Se a afirmação da Revolução Industrial leva à divisão do mundo em um antes e um depois da transformação da indústria têxtil localizada na região sul do condado de Lancashire, onde ficavam as cidades inglesas de Manchester e Liverpool, seu revisionismo consiste em questionar até que ponto este foi mesmo tão revolucionário, ou seja, se se tratava de um processo suis generis ou de apenas mais um episódio de uma série de ciclos longos de prosperidade e desenvolvimento. Schumpeter1, por exemplo, referiu-se a:

aquelas ondas longas2 na atividade econômica, cuja análise revela a natureza e o mecanismo do processo capitalista melhor do que qualquer outra coisa. Cada uma deles consiste em uma revolução industrial e na absorção de seus efeitos. (SCHUMPETER, 2010, tradução nossa)

Griffin nota que o questionamento da Revolução Industrial como fato histórico singular e excepcional prosperou inicialmente no período que vai do início da crise da década de 1920, até o fim da depressão, já nos últimos anos da guerra.

Depois, no pós-guerra, o pêndulo do debate voltou para o lado dos que veem na Revolução Industrial iniciada na Inglaterra um divisor de águas: o início de um processo exponencial de desenvolvimento econômico, e também, por muito tempo, de crescimento populacional. Essa mudança de percepção nos historiadores do pós-guerra certamente foi favorecida pelo boom econômico que estes experimentavam em vida, com a reconstrução do continente europeu e a difusão das tecnologias criadas no contexto militar.

Para Eric Hobsbawm, o mais reconhecido historiador britânico a despontar neste período, “a Revolução Industrial marca a mais fundamental transformação da vida humana na história do mundo registrada em documentos escritos” (HOBSBAWM, 1999, tradução nossa). Mas, segundo Griffin, já no final dos anos 1970, período no qual novas crises se manifestam, ganha renovado impulso a negação da importância atribuída à Revolução Industrial, principalmente a partir de parte dos historiadores que se utilizaram de ferramentas econômicas e estatísticas para empreender uma reavaliação do ritmo e da extensão com os quais os diferentes setores da indústria foram sendo transformados, através da quantificação de métricas como produtividade, produto interno bruto e volume de exportações das nações envolvidas.

Diversos historiadores econômicos tomaram partido neste debate. Strassmann, por exemplo, refuta o caráter central da destruição criadora de Schumpeter, ao mostrar como, entre 1850 e 1914, tecnologias novas e antigas coexistiram por várias décadas. Gilfillan em seu livro Inventing the Ship enfatizou o caráter perene do desenvolvimento do progresso técnico, “uma contínua adição de inúmeras pequenas melhorias, com somente muito raras inovações de grande porte”. Para exemplificar, ele expõe a evolução dos motores náuticos, uma lenta sequência de incrementos no tamanho e na resistência das caldeiras (GILFILLAN apud ROSENBERG, 2006). Fishlow notou algo semelhante no projeto das locomotivas e dos vagões de carga, que triplicaram seu volume entre 1870 e 1910 através de sucessivas melhoras sem “qualquer invenção memorável ou facilmente identificável”. Hollander conclui em seu estudo da eficiência das fábricas Duopont que as pequenas mudanças técnicas tiveram mais impacto na redução de custos que as grandes (ROSENBERG, 2006). Neste contexto, o trabalho de Craft (1985) torna-se influente por apresentar uma estimativa das taxas de crescimento econômico entre 1770 e 1830 que indicavam um ritmo muito menor do que o previamente assumido. Como em toda polêmica que envolve estatística, o método e os dados de Craft foram questionados e revisados de diversos ângulos, o que levou à relativização de sua descoberta, sem que isso permitisse um retorno às estimativas anteriores de crescimento.

Muitos historiadores ponderaram, então, que a simples mensuração dessas métricas econômicas não é suficiente para desvelar um processo histórico tão complexo, que certamente não se manifestou homogeneamente em todos os ramos da economia. Fazê-lo seria incorrer em um problema metodológico de mau uso do reducionismo. Com isso, e acompanhando um movimento geral da historiografia, o foco do debate mudou e passou a explorar as significativas mudanças sociais e culturais gestadas no período, como, por exemplo, a inserção das mulheres e das crianças no trabalho fabril, a mudança de gigantescos contingentes populacionais do campo para as cidades, as relações causais entre Revolução Científica e Revolução Industrial, entre outros temas (GRIFFIN, 2013). Dentro de tantas abordagens, baseadas em uma cadeia de fenômenos interpenetrados, uma análise materialista não pode abir mão de buscar entender o aspecto econômico deste processo, sua determinação em última instância, sem com isso desconsiderar em nada as sobredeterminações entre as diferentes esferas da vida humana.

É Engels quem apresenta a chave para compreendermos o significado histórico da Revolução Industrial, ao mostrar como o início desse processo na Inglaterra é o marco econômico da transição para um novo modo de produção, no qual despontam a burguesia industrial e o proletariado como classes sociais: “A história da classe operária na Inglaterra inicia-se na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a processar o algodão” (ENGELS, 2008, p. 45). O campo também é transformado com o despovoamento de diversas regiões, uma consequência da migração maciça para as cidades. SANTOS nota que

[…] a Revolução Industrial gerou uma atividade econômica nova: a atividade manufatureira-industrial. Ela retirou mão-de-obra do setor agrícola, representando então cerca de 80% da população, levando-a para as zonas urbanas (SANTOS, 1983).

Neste sentido, a Revolução Industrial do século XVIII tem sim um significado econômico e histórico especial, que não pode ser diluído como sendo apenas mais uma onda longa de uma série que pode ser retroagida ao Renascimento, à época medieval, ou mesmo à antiguidade como alguns propõem. Para Engels, a Revolução Industrial foi uma “revolução que alterou toda a sociedade civil”, e, portanto, só pode ser explicada dentro da dinâmica de uma mudança de qualidade na luta de classes.

Como afirma o Manifesto do Partido Comunista: “A própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca” (MARX, ???). Portanto, para compreendermos o surgimento do modo de produção capitalista, é necessário entendermos o surgimento da grande indústria como apenas um entre vários processos que conformam uma unidade histórica: a acumulação primitiva de capital, a conquista da América pelos colonizadores europeus, o enriquecimento da burguesia comercial, sua luta contra a nobreza, a dissolução das relações feudais por suas próprias contradições, etc.

Nesta dissertação, nos deteremos na análise das razões econômicas que levaram à generalização do moderno sistema fabril, sua relação com a produção científica e com o desenvolvimento tecnológico. Mas antes faremos algumas considerações acerca do processo de produção visto de uma perspectiva mais ampla, que extravasa o tempo histórico do capitalismo.

1Kuznet e Schumpeter são autores que enfatizaram o papel da inovação tecnológica e do progresso técnico para se compreender a dinâmica do crescimento capitalista. Para estes, o crescimento requer o desenvolvimento de novos produtos e ramos industriais. Para Schumpeter, o progresso técnico é também explicação para o alto grau de instabilidade das economias capitalistas, pois sua natureza é descontínua.

2Como parênteses, notamos que a aceitação da existência dos ciclos longos não exclui necessariamente o entendimento da importância histórica deste processo. Por exemplo, o primeiro ciclo longo de Kontradiev, conforme descrito por Schumpeter está identificado com a Revolução Industrial Britânica. Esses ciclos, de períodos próximo a meio século, divididos, por suas vezes, em períodos iguais de ascenso e descenso, seriam consequência da contínua repetição do processo de inovação e difusão de tecnologias, de acordo com os investimentos e com o retorno destes.