Como frisamos, a divisão proposta por Bevilaqua da Revolução Industrial em três fases, derivadas da análise de Marx dos três mecanismos que compõem o sistema de máquinas, admite a existência de sobreposições temporais, como a invenção de Joseph-Marie Jacquard, um pioneiro da automação que construiu, ainda em 1801, um tear programável através de cartões perfurados. Este trabalho é fundamental para a posterior criação dos computadores, da mesma forma que os trabalhos teóricos sobre as máquinas analíticas e algoritmos por Charles Babbage e Ada Lovelace, realizados ainda no século XIX (BEVILAQUA, 2015, p. 277 e 278).

O fato dos primeiros computadores comercializados terem sido construídos no final da Segunda Guerra Mundial, com base na solução proposta por Alan Turing ao “problema da decisão, Entscheidungsproblem, proposto por David Hilbert como um desafio em 1928”, é uma demonstração de como “diferentes ideias e inovações podem ser articuladas mesmo com séculos de distância entre elas e que nem toda invenção resulta imediatamente em uma inovação, e que sua difusão, revelando seu potencial, pode ocorrer muito tempo depois de seu primeiro uso” (BEVILAQUA, 2015, p. 277).

Independente de ser o acúmulo de trabalho de milhares de anos de desenvolvimento técnico, que pode ser remontado ao mecanismo de Anticítera, primeiro computador analógico de que se tem notícia, construído há mais de 2 mil anos, é só na terceira fase da Revolução Industrial, iniciada no pós-guerra, que a adoção de máquinas programáveis para exercer atividades de transmissão e controle revolucionam todo o processo produtivo.

Santos (1983, p. 40-41) observa como o custo dos microchips sofre uma redução a partir da década de 50 e como seu uso inicialmente se expande pelo setor de serviços e gestão. A partir daí eles se tornam ubíquos: na agricultura, na indústria, nos serviços, no sistema financeiro, na educação, na produção cultural, não existe departamento ou ramo da produção que não foi revolucionado pelo uso de computadores.

Ao assumirem as tarefas mais mecânicas controladas anteriormente pelo cérebro humano, através de uma estratégia reducionista de dividir o problema cognitivo em pequenas tarefas, os computadores, vistos como unidade dialética entre hardware e software, permitiram que diversas novas atividades fossem automatizadas.

Este processo pôde ser percebido por Marx, pois ainda que em sua época não houvesse mecanismos programáveis de controle, já havia uma sofisticação bastante grande nos mecanismos de transmissão, como correias, polias, etc. Na mineração, séculos antes de Marx, sistemas articulados de hastes de madeira chamados de Stangenkunsten transmitiam energia mecânica, obtida de geradores hidráulicos, para bombas, foles, e elevadores que transportavam os mineiros, nas montanhas, a quilômetros de distância dos vales dos rios.

Isso levou Marx a entender o sistema automático de máquinas, no sentido de que

automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” (MARX, 2011, p. 929).

Essa é uma diferença muita significativa com o papel que a ferramenta historicamente desempenhou como meio de trabalho, algo interposto entre o trabalhador e seu objeto de trabalho. As ferramentas são incorporadas pelo cérebro humano na representação mental que ele faz do nosso corpo. Por isso nós somos capazes de uma perícia tão grande ao manuseá-las, como se o nosso tato se estendesse para além da nossa pele e abarcasse a ferramenta, seja ela uma chave de fenda, uma bengala, um pincel ou o volante de um automóvel. Contrastando,

Em nenhum sentido a máquina aparece como meio de trabalho do trabalhador individual. A sua differentia specifica não é de forma alguma, como no meio de trabalho, a de mediar a atividade do trabalhador sobre o objeto; ao contrário, esta atividade é posta de tal modo que tão somente medeia o trabalho da máquina, a sua ação sobre a matéria-prima – supervisionando-a e mantendo-a livre de falhas (MARX, 2011, p.929 e 930).

Dessa perda de controle por parte do trabalhador direto decorre o estranhamento do qual escritores e cineastas se nutriram para construir um cenário no qual os humanos são desalojados por robôs, desde o Frankenstein da Mary Shelley. Marx nota que:

Não é como no instrumento, que o trabalhador anima como um órgão com a sua própria habilidade e atividade e cujo manejo, em consequência, dependia de sua virtuosidade. Ao contrário, a própria máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é o virtuose que possui sua própria alma nas leis mecânicas que nela atuam e que para seu contínuo automovimento consome carvão, óleo etc. (matérias instrumentais), da mesma maneira que o trabalhador consome alimentos. (MARX, 2011, p.930).

Vivenciamos no presente uma confirmação dessa projeção de Marx, com o acelerado desenvolvimento da inteligência artificial baseado em redes neurais, nos quais os sistemas aprendem ao considerarem uma série de exemplos, sendo capazes de tomar decisões sem que tenham sido programados para qualquer tarefa específica.

Os pioneiros das ciências da computação já haviam teorizado acerca das redes neurais ainda nos anos 40 e a Universidade de Stanford chegou a implementar uma rede neural funcional nos anos 60, ligando memistors1 em rede, chamada ADALINE, e que foi usada na prática para reduzir ecos em ligações telefônicas.

Contudo, a tecnologia enfrentou barreiras e o desenvolvimento da arquitetura de Von Neumann concentrou todas as atenções e financiamentos, convertendo-se no paradigma dominante, sendo-o até hoje.

Durante décadas, as redes neurais se mantiveram apenas como construções teóricas, de interesse acadêmico, com pouca aplicação prática. Mas, nos anos 80 foram disseminados os sistemas especialistas, uma das primeiras formas bem-sucedidas de uso de software de inteligência artificial. Eram programas que auxiliavam na realização de diagnósticos, no gerenciamento de riscos, mas também na área militar, como na detecção de submarinos.

Um novo salto ocorreu nas primeiras décadas do século XXI e os softwares de inteligência artificial se disseminaram rapidamente por toda a sociedade. Assumiram o comando de carros, aviões, trens e grandes embarcações. Recomendam livros, filmes e produtos com base no histórico pretérito de consumo. Reconhecem a voz, a face, as digitais e até o padrão de respiração das pessoas.

A IBM criou a plataforma Watson, que foi lançada como prova de conceito ao participar de jogos de perguntas e respostas, e hoje já é utilizada comercialmente em diversas aplicações, entre elas diagnósticos oncológicos, análise de investimentos, previsão do tempo, etc. O Google lançou o Alpha Go, que em março de 2016 venceu um match contra Lee Sedol, 18 vezes campeão mundial deste jogo extremamente popular na Ásia e que muitos consideravam um campo no qual as máquinas ainda levariam décadas para vencer os seres humanos, por conta do tamanho de seu tabuleiro, que comporta 2 x 10170posições, 1 milhão de trilhões de trilhões de trilhões de trilhões de vezes as posições possíveis em uma partida de xadrez. A segunda fase deste projeto, anunciada em dezembro de 2017, chama-se Alpha Zero, um software capaz de vencer qualquer outro humano, ou outro software criado até o momento, em diferentes jogos, que ele aprende jogando milhares de partidas contra si mesmo.

Ainda que somente agora o debate sobre os impactos da automação se generalizaram para sociedade como um todo, os efeitos deste processo vêm sendo estudados desde o pós-guerra. Santos (1983) refere-se ao trabalho de Radovan Richta, que promoveu um fértil debate no interior do campo socialista acerca do salto tecnológico ocorrido no pós-guerra. Este autor relaciona as transformações que testemunhava à tendência apontada nos Grundrisse da conversão da ciência na principal força do processo produtivo. Para este autor, esta nova configuração das forças produtivas não poderia ser contida dentro das relações sociais capitalistas, ou mesmo socialistas, requerendo para seu desenvolvimento de relações novas, superiores, comunistas.

Para Richta a “Revolução Científico-Técnica seria responsável por eliminar o trabalho elementar, substituindo-o pelo trabalho científico, que no núcleo da produção e da vida social, torna o desenvolvimento humano um fim em si mesmo. Esta tendência ao general intelect não está contudo concretizada em absoluto, mas já aparece como potência” (BEVILAQUA, 2015, p. 290).

Figura 11 – Centro de distribuição automatizado da Amazon

Fonte: The New York Times

O fato dessa tendência aparecer como potência não determina mecanicamente que ela se absolutizará, ainda mais quando sua afirmação implica, ao final, o agravamento da crise orgânica do capital. Muitas das tecnologias que hoje aparecem como inovadoras, como o carro elétrico, os drones, as redes neurais, existem há dezenas de décadas. Santos (1983), mostra como os monopólios retardam ao máximo a automação. Bevilaqua capta bem a

contradição desta fase de decomposição do sistema capitalista, na qual o desenvolvimento das forças produtivas é restringido pela crise do valor, pode ser constatada quando se observa que um operário de uma indústria de composição orgânica média, carrega em seu bolso um smartfone que incorpora mais tecnologia do que as máquinas na qual ele trabalha para seu sustento. A única explicação possível para tal fenômeno é a ação dos grandes monopólios que buscam desesperadamente retardar a adoção da automação, em uma tentativa de prolongar a vigência da lei do valor. Contudo, não conseguem reter esse movimento, dada a impossibilidade de um único monopólio dominar todo o mercado mundial, mas também, de forma cada vez mais acentuada, pela emergência da China, que se converteu nas últimas décadas na fábrica do mundo, investindo maciçamente em automação, o que renova a competição entre os sistemas (BEVILAQUA, 2015, p. 271).

O forte impacto dessas tecnologias na redução dos gastos com capital variável leva a uma corrida tecnológica entre as grandes empresas, que fica evidencia quando comparamos a lista das empresas que mais investiram em pesquisa e desenvolvimento em 2011 e 2017, segundo um estudo da PricewaterhouseCoopers.

Esta lista contém algumas omissões importantes, como o caso da gigante chinesa Huawei, que deveria estar na oitava posição com investimento de 11,2 bilhões de dólares, superior ao da Apple. Mas ela nos serve para ilustrar o rápido ritmo de substituição tecnológica.

Figura 12 – Investimento em pesquisa e desenvolvimento pelas grandes corporações

Fonte: PricewaterhouseCoopers

Nestes seis anos, a Amazon, que aumentou seu investimento em P&D em 830% e a Alphabet (nome da holding criada pela Google), que o fez em 271%, são duas grandes investidoras em inteligência artificial. A Amazon cresceu a partir de uma livraria online para um gigantesco comércio em geral (logística) e depois para uma megaholding que comprou diversas empresas de alta tecnologia, vendendo serviços ‘na nuvem’. Nos seus depósitos operam mais de 100 mil robôs, que complementam o trabalho das 125 mil pessoas que recebem os pedidos de compras, os separam, conferem, embalam e enviam.

O crescimento de 67% nos gastos com pesquisa e design da Volkswagen em 5 anos refere-se aos investimentos nos carros elétricos, mas também se insere nos esforços do Ministério da Educação e Pesquisa da República Federativa da Alemanha que criou um programa chamado Projeto Indústria do Futuro 4.0 (Zukunftsprojekt Industrie 4.0), no qual propõe, a partir da interação entre sistemas ciberfísicos, a criação da fábrica inteligente.

Dois rápidos exemplos e um dado nos mostram o nível de contradição que a atual onde de automação abre para um sistema que acumula riquezas, e poder político sobre a exploração do tempo de trabalho:

Em 1979, a General Motors empregava mais de 800 mil funcionários, e tinha receita de uns 11 bilhões de dólares. Em 2012, Google tinha receita de uns 40 bilhões de dólares, enquanto empregava 58 mil pessoas. […] No seu auge, em 2004, a Blockbuster tinha 84 mil funcionários, e tinha receitas de 6 bilhões de dólares. Em 2016, a Netflix tinha 4500 funcionários, e teve receita de 9 bilhões de dólares. […] Em 1998, empregados dos EUA trabalharam um total de 194 bilhões de horas. Ao longo dos 15 anos seguintes, o produto aumentou em 42%, mas em 2013, o total de horas trabalhadas por empregados dos EUA ainda era 194 bilhões de horas (KURZGESAGT. 2017)

Os sistemas automáticos de máquinas de novo tipo, baseados na inteligência artificial, estão sendo rapidamente adotados em todos os ramos da economia, inclusive no setor de serviços, que era visto como o baluarte dos empregos após a automação das fábricas. Médicos, arquitetos, músicos, professores, não existe profissão que não experimentará esses impactos.

Figura 13 – Design evolutivo com inteligência artificial

Fonte: ARUP

Nesta figura podemos ver um trabalho realizado como um projeto de pesquisa por uma empresa afirma global de engenheiros consultores, chamada Arup. O mais da esquerda é uma peça usada normalmente para fixar cabos. As outras duas componentes resultam da análise de um computador para encontrar o design ideal, capaz de fornecer a mesma força, mas usando menos material. O componente do meio foi otimizado mantendo-se os braços e cabos no mesmo local e resultou em uma economia de peso de 40%. A terceira versão foi obtida permitindo que o sistema reconectasse completamente toda a estrutura, o que levou a uma economia de peso de 75%.

É difícil antevermos qual será o impacto dessas tecnologias dentro de algumas décadas. E ainda mais, qual o significado destas para o desenvolvimento da luta de classes? Bevilaqua chama atenção para a contradição representada pela automação, que se por um lado atende uma necessidade econômica dos capitalistas, por outro afirma a autonegação do capital:

“automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” (MARX, 2011, p. 929).“automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” (MARX, 2011, p. 929).“automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” (MARX, 2011, p. 929).O grande impulso no desenvolvimento dessas máquinas ocorre já sob a sombra da crise orgânica do capital, mas, a primeira arma que ela municia ao capital, a automação, que se traduz num aumento de produtividade sem paralelo representa também a incidência do limite absoluto da relação capital, que se nega, ao tornar impossível a possibilidade de se mensurar o valor da ciência, como força produtiva, pelo tempo de trabalho (BEVILAQUA, 2015, p. 271).

Como vimos, a história do capitalismo é a história da Revolução Industrial. Esta, por sua vez estabelece uma complexa dialética entre ciência e tecnologia, ao ocorrer a “síntese entre o desenvolvimento do sistema produtivo e o desenvolvimento do conhecimento humano sistemático” (SANTOS, 1983, p.13). Limitados pelo escopo desta dissertação, pudemos apenas nos determos em alguns traços gerais desta relação. Antes de concluirmos, teceremos algumas observações sobre a Revolução Científica, focando em como, através de mudanças de paradigmas, o discurso científico articula sua lógica interna com as determinações socioeconômicas da prática científica.

1Componente eletrônico que se assemelha a um resistor, mas com memória e a possibilidade de realizar operações lógicas. Considerável como possível próximo paradigma em tecnologia de armazenamento.