Superbactérias: ficção científica ou mazela do capitalismo?

Superbactérias: ficção científica ou mazela do capitalismo?

A humanidade enfrenta problemas cada vez mais complexos e globais, que emergiram com a revolução industrial e a forma com a qual o capitalismo levou ao extremo sua visão unilateral de aplicação da ciência.

Um Relatório Global da OMS (Organização Mundial da Saúde), intitulado “Resistência Antimicrobiana”, trouxe a atenção da mídia para um problema ecológico global com um potencial catastrófico para a humanidade comparável ao do aquecimento global.

O prefácio do texto, assinado pelo Dr Keiji Fukuda, afirma taxativamente: “Uma era pós-antibióticos, na qual infecções comuns e pequenos ferimentos podem matar, longe de ser uma fantasia apocalíptica, é na verdade uma possibilidade muito real para o século 21”.

Estamos assistindo ao surgimento de cepas de bactérias totalmente resistentes a todo o tipo de medicação desenvolvida até então. Esse relatório traz à tona o caso de sete espécies de bactérias, tanto gram-positivas, quanto gram-negativas (afetadas por diferentes classes de antibióticos), que desenvolveram cepas resistentes às drogas de último recurso.

Essas drogas, com nomes complicados como carbapenêmicos, fluoroquinolona e ciprofloxacina, são usadas apenas no caso de pessoas com infecções que não puderam ser controladas com outros medicamentos.

No caso delas falharem, não há muito que a medicina atual pode fazer.


O Brasil tem um papel destacado neste debate.

A brasileira Carmem Lúcia Pessoa-Silva é chefe do programa da OMS para combate a micróbios resistentes a antibióticos. Em recente entrevista a um blog de divulgação científica, ela foi categórica ao falar sobre a necessidade da produção de antibióticos não ser regida pela lógica capitalista, e aponta os culpados por essa situação:

“O antibiótico, então, não pode mais ser visto como um bem comercial.Tem de ser visto como um bem público. Nós deveríamos desconectar os custos de desenvolvimento e de fabricação do retorno financeiro com as vendas. É para projetar essa transição que a OMS está promovendo agora diálogos com a indústria farmacêutica e a indústria alimentar.

Esta outra é uma das grandes responsáveis pelo surgimento de bactérias resistentes, também por uma falha da economia de mercado que permite o uso de antibióticos para engorda na pecuária, para prejuízo da medicina humana”.

No que consiste esse problema? Com certeza, não se trata de nenhuma novidade. Alexander Flemming, responsável pela descoberta da penicilina em 1928, ao receber o prêmio Nobel, em 11 de Dezembro de 1945, alertou:

“Mas eu gostaria de fazer uma advertência. A penicilina é para todos os efeitos não-tóxica, por isso não há necessidade de se preocupar com uma overdose ou envenenamento do paciente. Pode haver, contudo, um risco de subdosagem. Não é difícil criar micróbios resistentes à penicilina em laboratório, expondo-as a concentrações não suficientes para matar, e o mesmo tem acontecido ocasionalmente no corpo”.

As bactérias se reproduzem a uma velocidade muita rápida, e essa reprodução, como a de qualquer ser vivo, está sujeita à introdução de mutações, que podem propiciar uma resistência aos efeitos dos antibióticos.

Dessa forma, quando o tratamento mata uma grande porcentagem, mas não a totalidade de uma certa colônia de bactérias, as que sobram vivas podem portar o gen resistente. Após um certo tempo e do repovoamento do ambiente, todas as bactérias da colônia exibem a resistência.

Como o próprio Flemming relatou, o surgimento de bactérias resistentes a penicilinas já havia sido identificado antes mesmo do lançamento comercial da mesma nos anos 1940. O termo “superbactérias”, usado pela mídia de forma sensacionalista não ajuda em nada na educação acerca do fenômeno.

Para os biólogos marxistas, não se trata de um roteiro de ficção científica, mas sim das condições materiais da vida das pessoas. Levins e Lewontin, em seu artigo “Será o capitalismo uma doença?” lembram do exemplo da Praga na Europa.

Aprendemos nos livros de história que a Praga foi levada à Europa através dos navios que vinham da Ásia. Na verdade, essa explicação monocausal é falha. Ela não leva em consideração que a Praga já havia aparecido no século VI, durante o final do Império Romano.

O que nos leva à explicação mais plausível de que a Praga entrou na Europa diversas vezes, mas que ela teve que encontrar condições específicas para prosperar, um momento no qual a população se tornou mais vulnerável a doenças transmitidas por ratos, através de uma crise social que levou à miséria.

A indústria farmacêutica está criando um fenômeno que coloca em risco milhões de vidas humanas. Porém uma verdadeira política de saúde pública não significa derrotar apenas os capitalistas da indústria farmacêutica, mas esse sistema como um todo. Como a OMS alertou, um dos principais responsáveis pelo surgimento desse problema é o uso de antibióticos nas rações de animais, como a vancomicina que é dada aos frangos e que acaba chegando pelo garfo ao nosso corpo.

É fundamental uma compreensão mais totalizante desse problema, relacionando-o com todos os outros aspectos da vida no planeta e mais especificamente numa sociedade de classes.

As bactérias são os primeiros habitantes do planeta terra, tendo existindo por quase 3 bilhões de anos, antes do surgimento dos primeiros seres multicelulares, e ainda continuam sendo, de acordo com muitos critérios, a forma de vida dominante em nosso planeta.

Em termos de biomassa total, em todo o planeta, as bactérias, apesar do seu tamanho microscópico, são campeãs, acima das plantas e dos animais somados. Em uma única grama de solo existem em média 40 milhões de bactérias.

Não podemos abordar essa questão como um problema de competição entre nós e elas. Na verdade, para cada célula em nosso corpo, temos pelo menos 10 bactérias que o habitam. Muitas dessas bactérias, como as presentes em nosso sistema digestivo são absolutamente essenciais para a vida humana.

Um ser humano totalmente isento de germes não poderia sobreviver. Na verdade, cada pessoa é um ecossistema, no qual nosso DNA e o de trilhões de bactérias convivem em simbiose.

Não existe uma forma simples de se abordar um problema que envolve um processo dinâmico, como é a vida, com uma infinidade de variáveis. Quando utilizamos um antibiótico de amplo espectro, é como se jogássemos uma bomba atômica nessa comunidade.

As bactérias mais adaptadas ao nosso organismo e com a qual convivemos bem, são as que tem menos defesas, já que não enfrentam oposição do nosso sistema imunológico. Essas bactérias competem diretamente com as que nos são nocivas.

Ao matá-las estamos na verdade destruindo um sistema de proteção que criamos durante toda a coevolução entre nosso espécie e essas bactérias.

A única solução para este problema é a mudança de modo de produção, de forma a estabelecer o poder político nas mãos da classe operária, dos produtivos, que constituem o aspecto consciente da humanidade.

Apenas com novos valores podemos abordar esse problema de forma integral, com uma visão ecológica e social.

Texto publicado originalmente em junho de 2014 na Edição nº 473 do Jornal inverta

A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

A revolução científico-técnica e a terceira fase da Revolução Industrial

Um século e meio após os estudos históricos de Marx e Engels, podemos perceber que se a primeira fase da Revolução Industrial, entre 1735 e 1840, é a parteira de um novo modo de produção, e uma segunda fase desta, entre 1848 e 19451, ao incorporar novas fontes de energia térmica à produção, é responsável pela expansão do sistema capitalista por todo o globo, sua terceira fase, iniciada no pós-guerra, e da qual somos contemporâneos, com a revolução dos mecanismos de transmissão e controle, a cibernética, ao permitir a automação da produção, leva o sistema capitalista a uma crise que se apresenta insuperável dentro dos marcos do sistema (BEVILAQUA, 2015).

Como vimos anteriormente, se não podemos responsabilizar diretamente a produção científica, entendida em seu sentido mais estreito como corpo de conhecimento sistematizado e promovido a partir de instituições oficiais (universidades, periódicos, conferências, etc), pelo impulso inicial que levou à industrialização, também não podemos descartar o poder explicativo neste contexto de um uso mais abrangente do termo ciência, considerado como uma nova atitude paradigmática frente a realidade material, experimentação empírica e autoridade da hierarquia religiosa.

Entretanto, com o tempo, essa distinção vai sendo apagada e o desenvolvimento da técnica

não é mais um resultado de avanços pragmáticos e empíricos na maneira de produzir. A ciência assumiu o papel de dirigente do desenvolvimento tecnológico, os ramos de produção se convertem em campos de atividades criados e controlados por ela. A ciência se converte em uma força produtiva direta (SANTOS, 1983, p. 9)

A economia passa a direcionar de forma mais contundente o conjunto da pesquisa científica, gigantescos ramos da indústria que não existiam são criados a partir de descobertas científicas e passam a atrair para si, em uma espécie de ciclo virtuoso, mais trabalho de pesquisa, como exemplificam o caso da indústria química, da aviação, da informática, entre outros. O trabalho científico sai da periferia e se coloca no centro do processo produtivo, como sua força mais importante.

Santos (1983) notou que a produção científica tornou-se parte essencial da acumulação. Os custos em pesquisa e desenvolvimento são parte do custo final do produto e os laboratórios e centros de pesquisa se transferem para dentro das empresas. A atividade científica é agora vista como um investimento que se incorpora ao capital constante e ao variável: entra nos custos de produção (SANTOS, 1983, p. 61-62).

Santos (1983) propõe uma ampliação do esquema original D-M-D de Marx, que, ao incorporar a atividade científica, pode ser reescrito da seguinte forma:

_________CI ……. I ____________
D – M
_________CP …… M’ – D – M’ – CPI … MI – DI

Na qual CI é o capital investido em tecnologia, o que permite que um capital, acumulado anteriormente, torne-se CPI, ou capital investido em um novo produto, resultado da pesquisa realizada (SANTOS, 1983, p. 76-81).

Por sua vez, a ciência se converte em tecnociência, que para ser realizada requer, cada vez mais, a invocação de uma parcela gigantesca de trabalho acumulado na forma de laboratórios, instrumentos científicos e capital humano (trabalho pretérito em educação e formação). A partir deste ponto não bastam mais bons mecânicos, inventores, artesãos, autodidatas, homens e mulheres práticos, esses personagens que protagonizaram o desenvolvimento tecnológico na época da manufatura e nos primórdios da indústria.

O processo empírico, baseado na tentativa e erro, adquire um novo significado dentro do contexto da produção científica industrial. Em seu diário, Thomas Edison relata ter testado 1.600 diferentes fibras até chegar no carbono e posteriormente no tungstênio como materiais ideias para a fabricação do filamento de suas lâmpadas. Mas, não se pode tomar essa anotação como evidência de que ele fez tudo isso sozinho, sua empresa contava com dezenas de pesquisadores trabalhando em tempo integral no desenvolvimento de seus produtos.

Talvez Edison seja o melhor arquétipo desta transição, com a qual a produção científica passou a ser quantificada pelo número de patentes registradas. Mesmo que o sistema de patentes já existisse há séculos, e que já tivessem ocorridas ferozes disputas legais em torno dessas, como a experimentada por James Watt que patenteou o motor a vapor em 1796, Edson acumulou 1.093 patentes em seu nome, apenas nos Estados Unidos, e utilizou-se destas para se ascender à classe burguesa.

Santos (1983) nos mostra como, no pós-guerra, esse processo de entrelaçamento entre a ciência e o capital se estreita ainda mais. Em seu artigo Mudança Tecnológica e Economia Mundial, apresentado aos seus alunos, mas ainda não publicado,este autor chama atenção para o fato de que:

A questão da integração da ciência como força produtiva é parte indispensável do processo de produção, pode ser medida através da intensidade dos gastos com pesquisa e desenvolvimento em relação ao produto de cada setor econômico (SANTOS, 2002, manuscritos).

Neste texto, Santos apresenta os dados do informe sobre ciência e tecnologia da OECD colhidos em fins década de 1980 e, com base neles, demonstra como estes investimentos cresceram maciçamente depois da Segunda Guerra Mundial. Para se ter uma ideia de como essa tendência continuou evoluindo, em 2016, o total mundial desses gastos foi de cerca de 1,15 trilhão de dólares, ou seja, mais de 2% do PIB mundial. Estão aí englobados os gastos com pesquisa básica, aplicada e em desenvolvimento (ou seja inovações baseadas em tecnologia já existente).

Cada vez mais, as pesquisas de ponta em diversas áreas dependem de projetos multibilionários, todos eles com forte participação estatal. O Grande Colisor de Hádrons levou uma década para ser construído e consumiu 7,5 bilhões de euros até 2010. O orçamento anual para sua operação consome cerca de 1 bilhão de dólares por ano. O Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser, que permitiu a observação de ondas gravitacionais custou 1,1 bilhão de dólares em 40 anos. No Projeto Genoma Humano foram dispendidos, até o sequenciamento concluído em 2003, 2,7 bilhões de dólares. São pesquisas que envolvem ciência básica, mas que também levaram ao desenvolvimento de diversas tecnologias para se viabilizarem, e resultam na criação de diversos novos produtos.

Nenhum destes projetos citados acima custou tanto quanto a Estação Espacial Internacional, cerca de 150 bilhões de dólares até 2015, divididos entre Estados Unidos, Rússia, Japão, Canadá e a Agência Espacial Europeia, composta por 13 países deste continente, quase 50% a mais que o projeto Apollo, que custou 23 bilhões de dólares em 1973, o que equivale a 107 bilhões de dólares se atualizarmos o valor para o parâmetro de 2016.

Podemos considerar como percursor desses megaprojetos de produção científica em escala industrial, o projeto Manhattan, que permitiu o controle sobre a fissão nuclear no final da Segunda Guerra, ao custo de 2 bilhões de dólares de então, o que hoje equivaleria a mais de 22 bilhões de dólares. A maioria destes projetos está ligada diretamente à área militar, sendo que o Manhattan foi desenvolvido no curso da Segunda Guerra, e permitiu a construção da bomba atômica, o que comprova o importante papel que este conflito e, posteriormente a corrida armamentista da guerra fria, desempenharam no crescimento dos investimentos em ciência.

Todos esses projetos foram financiados principalmente com recursos públicos e envolveram centenas, ou mesmo milhares, de pesquisadores trabalhando conjuntamente. Mas, a principal destinação dos investimentos foi em obras de infraestrutura, compra de equipamentos, gastos administrativos, entre outros custos indiretos.

O projeto Manhattan, por exemplo, chegou a empregar cerca de 130 mil pessoas, a maioria delas operários da construção civil, mas, neste e nos demais megaprojetos, foram significativas as contratações de trabalhadores especializados e qualificados, principalmente na produção dos equipamentos.

Na segunda metade do século XX, os gastos do setor privado com ciência e tecnologia seguiram o mesmo caminho de crescimento acelerado do investimento público, ainda que mais voltados para a pesquisa aplicada e para a inovação, onde o retorno é mais imediato.

A estruturação os centros de pesquisa e design dentro das grandes empresas começa no início do século XX, o que faz permite que esses assumam parte de um espaço que era até então exclusivo das universidades. Em 1925, com a emergência da telefonia como um negócio mundial, quatro mil cientistas e engenheiros foram contratados pelo recém-criado Bell Telephone Laboratories. Ao longo de sua história, esta instituição privada, mas que sempre recebeu bolsas da DARPA, agência de pesquisa em defesa dos EUA, hospedou 8 trabalhos que receberam o Nobel, além de ter sido lá que revolucionárias tecnologias foram desenvolvidas, como o transistor, o laser, o sistema operacional Unix e a linguagem de programação C. Desde 2016 este centro de pesquisa é de propriedade da gigante de telecomunicações finlandesa Nokia.

A participação da empresa Celera no Projeto do Genoma Humano e mais recentemente as mudanças relacionadas à indústria espacial nos Estados Unidos, com a NASA passando a conviver com outras fabricantes de foguetes, como a Space X e a Blue Origin, demonstram o controle cada vez mais direto do setor privado sobre essas áreas estratégicas.

1Por limites de tempo, não pudemos tratar especificamente da segunda fase da Revolução Industrial, período fundamental na história do sistema capitalista, pois compreende sua expansão por todo o globo e o surgimento do imperialismo. Sugerimos a leitura de BEVILAQUA (2015, p. 264-270) para uma interessante análise sobre como os novos problemas surgidos da necessidade de compreensão do mundo como um processo global levou a uma crise nos paradigmas científicos positivistas e ao surgimento das ciências de transformação como a Geologia e a Biologia Evolutiva.

A máquina-ferramenta e o início de um processo

A máquina-ferramenta e o início de um processo

Spinning Jenny

Em famosa nota de rodapé em O Capital, Marx cita a história das espécies biológicas contada a partir de Darwin e lança o desafio da escrita de uma história da evolução dos projetos das máquinas, desestimando o papel dos inventores individuais, em favor das forças sociais e da luta de classes: “Uma história crítica da tecnologia provaria, sobretudo, quão pouco qualquer invenção do século XVIII cabe a um só indivíduo.” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 8).

Marx, que como vimos era um dedicado estudioso do desenvolvimento tecnológico, adianta alguns pontos dessa história em um breve relato que ele apresenta para ilustrar sua análise econômica mais abrangente da transição da manufatura à grande indústria. Nesta obra, Marx confere papel preponderante no início da Revolução Industrial ao desenvolvimento da máquina-ferramenta. A máquina-ferramenta que ele também chama de máquina de trabalho é a parte da máquina que, tendo recebido movimento da máquina-motriz e do mecanismo de transmissão, “se apodera do objeto de trabalho e o modifica conforme a uma finalidade” (MARX, 1996, l. 1, v. 2. p. 9).

Contudo, conforme nota Santos (1983, p. 18) é erroneamente dada “excessiva ênfase [da literatura atual] ao surgimento da máquina a vapor como causa da Revolução Industrial”. Marx já havia abordado diretamente esta questão:

É dessa parte da maquinaria, a máquina-ferramenta, que se origina a revolução industrial no século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada.[…] A própria máquina a vapor, como foi inventada no final do século XVII, durante o período manufatureiro, e continuou a existir até o começo dos anos 80 do século XVIII,11 não acarretou nenhuma revolução industrial. Ocorreu o contrário: foi a criação das máquinas-ferramentas que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada. (MARX, 1996, l.1, v.2, p. 9, 11).

Exemplo dessa visão, criticada por Santos, é o trabalho de Wrigley, da cadeira de demografia histórica e presidente da Academia Britânica de Ciência entre 1994 e 2000, para quem o uso do carvão como energia é a chave para se entender a Revolução Industrial. Para este, a queima do carvão forneceu uma nova fonte maciça de energia, que permitiu o crescimento da indústria, sem que isso representasse uma acumulação sobre o que era dispendido com a alimentação e habitação da população (GRIFFIN, 2013). Contudo, tendo se tornado o polo dinâmico do desenvolvimento na fase seguinte, marcada pelos navios a vapor e pelas ferrovias, neste primeiro momento, o vapor era utilizado de forma limitada para drenar minas e pântanos, e para mover algumas máquinas.

Em contrapartida, Engels, em a Situação da Classe Operária na Inglaterra, descreve como a dinâmica estabelecida entre dois ramos interligados da indústria têxtil, a fiação e a tecelagem, sendo o primeiro produtor de matéria-prima utilizada no segundo processo, dentro do contexto da luta de classes, acelerou a mecanização da produção, que neste primeiro momento era movimentada por energia manual ou por rodas d’água.

Mais especificamente, tanto Engels, como Marx em O Capital estabelecem a invenção da máquina de fiar conhecida como Spinning Jenny como o início do processo de mecanização da produção. Esta máquina continha um quadro de fiação multifuso, o que permitiu que cada trabalhador operasse com até 8 carretéis ao mesmo tempo. A máquina de fiar hidráulica, que logo a superou, permitiu uma ampliação ainda maior da produção. Com isso,

tornou-se possível produzir muito mais fio: se antes um tecelão ocupava sempre três fiandeiras, não contava nunca com fio suficiente e tinha de esperar para ser abastecido, agora havia mais fio do que o número dos trabalhadores ocupados podia processar. (ENGELS, 2008, p. 48).

Se recuarmos um pouco a análise desta relação dialética entre os ramos têxteis, veremos que a invenção da máquina de fiar já respondia à anterior introdução da lançadeira volante de John Kay, que aumentou a produtividade dos teares ao fazer a lançadeira (que tem papel análogo ao da agulha do tricô) correr sobre uma ranhura de madeira auxiliada por rodinhas, o que permitiu que um número maior de tramas pudessem ser tecidas concomitantemente (MCNEIL, 2002, p. 821). Entretanto, a lançadeira volante, mera extensão do braço do tecelão, é considerada uma ferramenta e não uma máquina.

Conforme nota Mcneil, apesar das estimativas variarem entre os estudiosos, com a lançadeira volante e outros inventos, mas antes da invenção da Spinning Jenny, eram necessários, em média, oito fiadores para produzir o material utilizado por cada tecelão:

Todas as novas invenções que emergiram durante o século dezoito para produzir diferentes tipos de tecido de forma mais rápida precipitaram uma crise: porque todo linho, lã ou algodão tinham que ser fiados na roca de fiar medieval, que operava com uma única fibra, fazendo com que o suprimento de fios se tornasse inadequado (MCNEIL, 2002, p. 824)

Conforme se pode perceber, estabeleceu-se um ciclo de retroalimentação entre a produção de fios e a de tecidos, o que reduziu o preço do produto final levando, em um ciclo virtuoso, ao crescimento de sua demanda, que teve novo efeito impulsionador sobre a indústria têxtil. Outro fator importante de geração de demanda foi a aprovação no parlamento inglês, entre 1690 e 1721, da série de leis conhecidas como Calico Acts que proibiram a importação de tecido, criando uma reserva de mercado para os tecidos produzidos na Inglaterra (BEVILAQUA, 2015, p. 259).

Engels percebe o impacto que esta relação dialética teve no surgimento da classe operária e na destruição dos yeoman, os pequenos proprietários agrícolas ingleses:

houve necessidade de mais tecelões e seus salários aumentaram. Podendo ganhar mais trabalhando em seu tear, a pouco e pouco o tecelão abandonou suas ocupações agrícolas e dedicou-se inteiramente à tecelagem (…) Gradativamente, a classe dos tecelões-agricultores foi desaparecendo, sendo de todo absorvida na classe emergente dos exclusivamente tecelões, que viviam apenas de seu salário e não possuíam propriedade, nem sequer a ilusão de propriedade que o trabalho agrícola confere – tornaram-se, pois, proletários (working men). A isso se juntou a destruição da antiga relação entre fiandeiros e tecelões. Até então, na medida em que era possível, o fio era fiado e tecido sob um mesmo teto; agora, já que tanto a jenny quanto o tear exigiam mão robusta, os homens também se puseram a fiar e famílias inteiras passaram a viver exclusivamente disso (…) Foi dessa maneira que se iniciou a divisão do trabalho entre fiação e tecelagem, que seria levada ao grau extremo na indústria posterior. (ENGELS, 2008, p. 48 e 49).

Além do proletariado industrial, que passou a se concentrar nas cidades, a revolução industrial também transformou o panorama agrário. O proprietário médio (yeoman) não podia mais competir com a crescente classe dos latifundiários, que se beneficiou da migração dos antigos fazendeiros tecelões para as cidades, apossando-se de suas terras. Para o primeiro, “que não tinha outra alternativa senão vender sua terra – que já não o sustentava – e adquirir uma jenny ou um tear ou empregar-se como jornaleiro, proletário agrícola, de um grande arrendatário” (ENGELS, 2008, p. 49). Como nota Bevilaqua, “este é um exemplo de que na própria gênese da fase industrial do capitalismo se encontra o problema da desproporção entre os setores, e que, em invés dela representar a causa da crise orgânica do sistema, […] insere um desequilíbrio que enseja toda uma dinâmica de transformações tecnológicas” (BEVILAQUA, 2015, p. 261).

Esse movimento de incessante desenvolvimento de novas tecnologias foi ganhando momentum. Para Marx: “a mecanização da fiação tornou necessária a mecanização da tecelagem e ambas tornaram necessária a revolução mecânica e química no branqueamento, na estampagem e na tinturaria” (MARX, 1996, l. 1, v. 2, p. 18).

O passo seguinte é o desenvolvimento do tear mecânico:

É a colossal quantidade de fios disponibilizada pela spinning mule [uma sucessora da Spinning Jenny, movida com energia hidráulica] que leva à criação do tear mecânico, já que, como também nota Marx, os teares baseados na lançadeira volante, na qual o trabalhador ainda ditava o ritmo do trabalho, não cumpriam o critério de uma forma “emancipada da antiga forma corpórea tradicional da ferramenta, que se metamorfoseia em máquina” (BEVILAQUA, 2015, p. 262).

Por seu papel na criação de um novo panorama social, que, como vimos, tem profundas implicações demográficas, sociais, culturais e econômicas, a máquina é o que permite a passagem da subordinação formal do trabalho ao capital a uma subordinação real, na qual a subsunção dos trabalhadores proletários se dá, fundamentalmente, não através de imposições jurídicas e da coação direta, mas da necessidade econômica dos trabalhadores, separados dos meios de produção, que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver.

Portanto, junto do proletariado surge seu antagonista, a burguesia industrial. Se antes, “o comerciante entregava matérias-primas aos artesãos e garantia a compra de seus produtos, fazendo com que os artesões trabalhassem para ele, sem em nada mudar suas condições de trabalho”, agora o capitalista passava a controlar diretamente o trabalho produtivo (SANTOS, 1983, p. 17).

A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

Para entendermos o surgimento da indústria a partir do materialismo histórico, é necessário compreendermos o fato, demonstrado por Bevilaqua (2016), de que no método de Marx a máquina deve ser entendida como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, o que contrasta com a abordagem mais histórico-descritiva de Rosenberg. Deve-se, primeiramente, entender o papel da máquina nas transformações ocorridas no processo de produção de valores de uso, um papel que a distingue da ferramenta, pois se ao longo de todo o período pré-industrial da história da humanidade era a força de trabalho o ponto de partida do revolucionamento do modo de produção, na grande indústria este ponto de partida está no meio de trabalho (MARX, 1996, Livro 1, v. 2. p. 8). Em contraste com a ferramenta e mesmo com a manufatura, o sistema de máquinas relativiza todos os limites impostos pela natureza do corpo humano à produção, o que é um pré-requisito para a aplicação extensiva e sistemática da ciência na produção.

O sistema de máquinas e aplicação da ciência na produção ocorrem após um longo desenvolvimento do processo de trabalho, durante o qual este se torna cada vez mais social:

o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho pressupõe cooperação em larga escala, como só com esse pressuposto é que podem ser: organizadas a divisão e a combinação do trabalho; poupados meios de produção mediante concentração maciça; criados materialmente meios de trabalho apenas utilizáveis em conjunto, por exemplo, sistema de maquinaria etc.; postas a serviço da produção colossais forças da Natureza; e pode ser completada a transformação do processo de produção em aplicação tecnológica da ciência. (MARX, 1988, l. 1, v. 2 p. 255-256).

Já na perspectiva do processo de produção de valores, deve-se partir da concepção da máquina como capital constante em geral, ou seja, como trabalho morto objetivado, valor cristalizado. “Neste sentido, a máquina é um armazenador de trabalho vivo, que pode ser despendido em um outro ciclo produtivo” (BEVILAQUA, 2015, p. 256). Mas, além disto, no processo de produção de valores, se revela uma nova função da máquina que demarca novamente sua distinção da ferramenta e que vai além da mera redução de custos. Conforme Marx nota, o móbil da burguesia ao investir no desenvolvimento da maquinaria é: “baratear a mercadoria e, mediante o barateamento da mercadoria, baratear o próprio trabalhador.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 1, p. 435).

Desta forma, a maquinaria aparece como produto da luta de classes, arma da burguesia contra o proletariado, o que está na base das razões históricas do surgimento do movimento de resistência dos ludistas. Prova disso é que seu emprego se dá primeiramente não nos locais onde a mão de obra era escassa, mas justamente na região da Inglaterra onde se concentrava um enorme exército industrial, o qual seu emprego regulava e disciplinava.

Da mesma forma, a luta interna entre a burguesia é fundamental para compreendermos a difusão das máquinas:

este papel só faz sentido ao observar-se a tendência à equalização da taxa de lucro entre os capitalistas que atuam em diversos ramos. A adoção das máquinas apenas se justifica em um mercado no qual se confrontam diversos capitalistas, sejam eles os primeiros industriais que expropriaram os tecelões de Lancashire no século XVIII, ou os grandes monopólios que nos dias de hoje travam guerras entre si. Sem isso a mecanização não se sustentaria; não seria possível a sobrevivência dos setores com alta composição orgânica se eles não fossem capazes, através das trocas desiguais, de se apropriarem da mais-valia produzida nos outros ramos, onde o uso do capital variável é mais intenso (BEVILAQUA, 2015, p. 257).

Isso explica porque a classe capitalista é a primeira classe dirigente na história cujos interesses estão indissoluvelmente ligados à mudança tecnológica e não à manutenção do status quo. Essa característica do modo de produção capitalista, que embutiu a constante renovação tecnológica à sua dinâmica econômica, levando à Revolução Industrial e à transformações que não encontram paralelo na história pós-neolítica, foi descrita por Marx e Engels na famosa passagem do Manifesto Comunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras (MARX, 1998, p. 43).

Em sua existência como corporificação do capital, a máquina, vista como produto ou como processo industrial, transforma a ciência em uma força produtiva dominada pelos capitalistas:

O desenvolvimento do meio de trabalho em maquinaria não é casual para o capital, mas é a reconfiguração do meio de trabalho tradicionalmente herdado em uma forma adequada ao capital. A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo de produção. A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo, e o capital fixo, na medida em que o capital é considerado na relação consigo mesmo, como a forma mais adequada do capital de modo geral (MARX, 2011, p. 581-582).

Desta forma, mesmo sendo o acúmulo de séculos do trabalho de cientistas, que, em muitos casos se converteram em proletários assalariados, ela se apresenta como alheia aos trabalhadores, levando à mistificação do capital, à máxima fetichização da mercadoria:

A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina (MARX, 2011, p. 580-581).

Esse processo de estranhamento dos trabalhadores com relação à sua própria produção, à medida que seu corpo foi sendo objetivado nas três partes que, segundo Marx, constituem o sistema de máquinas: máquina-ferramenta, motor e mecanismos de transmissão e controle, ocorreu (e ocorre) em um longo período histórico de sucessivas ondas de incorporação tecnológica à produção, a Revolução Industrial. A lógica que permite sua divisão em três fases é objeto da análise de Bevilaqua (2015):

transformações nas três partes que conformam o sistema de máquinas, permitem a compreensão da dialética entre as três e, como cada uma delas, dentro de um determinado processo histórico, assume o lugar de polo dinâmico da relação, ditando o ritmo e a direção das transformações operadas nas outras. (BEVILAQUA, 2015, p. 251).

A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A ciência e a inovação no contexto do processo de produção de valor

A especificidade do processo de trabalho no modo de produção capitalista é que o processo de produção de valores de uso, objetos destinados à satisfação das necessidades humanas, conforma uma unidade dialética com o processo de produção de valor, mensurado através do quantum de trabalho social contido em cada mercadoria. Enquanto que a produção de valores de uso só é possível pelo caráter concreto do trabalho, o processo de produção de valor só faz sentido ao considerar-se o caráter abstrato do trabalho, justamente o que permite que as mais variadas atividades produtivas humanas possam ser comparadas e seus resultados intercambiados no mercado.

Esta contradição histórica desenvolvida pela relação-capital, manifesta no duplo caráter do trabalho (concreto e abstrato) e que se expressa na ambiguidade da forma mercadoria (valor de uso e valor de troca) também se manifesta na produção científica:

Ao mesmo tempo em que ela é um momento do acúmulo de conhecimento humano, que pode ser traduzido em uma aplicação concreta (seu valor de uso), ela também é uma indústria, um departamento da produção capitalista, que só pode ter sua dinâmica explicada pelo processo de valorização do capital (seu valor de troca) (BEVILAQUA, 2015, p. 295).

Conforme observa Marx no fragmento dos Grundrisse dedicado às máquinas, “A invenção torna-se então um negócio e a aplicação da ciência à própria produção imediata, um critério que a determina e solicita” (MARX, 2011, p. 587).

Reconhecer a mercantilização da ciência e sua submissão à lógica da relação capital no processo de produção de valor não neutraliza o papel revolucionário do desenvolvimento tecnológico que media e transforma a relação entre os seres humanos, e também entre estes e a natureza.

O processo de reprodução de capital não pode ser examinado satisfatoriamente apenas pelo lado do valor de troca, por isso Marx abordou ambos os aspectos da mercadoria e do trabalho em sua análise. É na vitalidade dessa contradição, e no movimento que resulta da unidade dos contrários, que residem os efeitos que permitem vincular a produção científica à crise orgânica do capital.

Santos (1983) destaca o fato de que as mudanças tecnológicas afetam o caráter útil e concreto dos bens. São produzidas na vida material e não no plano mercantil. São um acúmulo da experiência produtiva do homem, do desenvolvimento da ciência e independem do modo de produção. O sistema não pode criar um conhecimento que não se submete à própria lógica do conhecimento. Isso não significa atribuir uma neutralidade à tecnologia. O capitalismo impulsiona as mudanças que favorecem o aumento da taxa de lucro. (SANTOS, 1983, p. 237-250)

A partir da lógica da análise econômica, Rosenberg (2006, p. 18) refere-se ao debate em torno do papel econômico desempenhado pelo progresso científico-técnico no capitalismo:

A grande massa de escritos dos economistas sobre o tema […] tanto teóricos, quanto empíricos se atém ao papel das mudanças técnicas na redução de custos. Essa redução ocorre, porque o desenvolvimento tecnológico aplicado à produção permite que com a mesma quantidade de capital investido se produza um volume maior de um dado produto.

Apesar do discurso de muitos burgueses que se autointitulam beneficentes e que afirmam estarem doando suas fortunas desinteressadamente para financiar, por exemplo, a conquista do espaço, é um fato que o investimento em ciência e tecnologia é feito somente se um retorno econômico puder ser vislumbrado, direta ou ainda indiretamente, como no caso da pesquisa militar, esfera na qual, além do lucrativo mercado internacional, a supremacia possibilita o domínio de recursos e mercados. Se os problemas tecnológicos para se enviar um foguete à lua não fossem exatamente os mesmos que os para se enviar uma ogiva nuclear até outro continente através de uma trajetória balística, certamente a corrida espacial não teria a importância que teve durante a corrida armamentista nuclear no contexto da Guerra Fria, como demonstra o fato notável de nenhum ser humano ter pisado na lua desde 1972, mesmo ano em que os Estados Unidos e a União Soviética iniciaram as tratativas que levaram à assinatura do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), banindo novos desenvolvimentos na área e estabilizando o balanço de forças entre estas potências. Já o ressurgimento da indústria espacial na segunda década do século XXI está ligado à possibilidade de mineração de asteroides e a uma nova corrida armamentista no contexto do fim da hegemonia estadunidense1.

Isso não significa, como simplificam em demasia muitos economistas, algo notado por Rosenberg, que tudo que possa ser dito sobre o papel econômico da tecnologia esteja reduzido à sua capacidade de aumentar a produtividade e reduzir os custos de produção. Ele destaca um segundo efeito do avanço tecnológico tão importante quanto o de reduzir custos: a introdução de novos produtos e o aprimoramento de sua qualidade. Para este autor, “excluir do progresso técnico a inovação de produtos, especialmente quando se consideram longos períodos históricos, equivale a encenar Hamlet sem o príncipe” (ROSENBERG, 2006, p. 19). Isso complexifica sobremaneira a análise que deixa de ser apenas quantitativa e limitada a produtos que permanecem inalterados.

Entretanto, não se pode desconhecer uma distinção fundamental entre esses dois efeitos do progresso tecnológico na economia: enquanto a redução de custos é algo ativamente buscado, o surgimento de novos ramos e produtos é algo que não pode ser previsto a priori dada a própria natureza da pesquisa científica. Assumimos que o desconhecido se comporta de forma similar ao conhecido, senão a ciência não seria possível, contudo, é justamente pelo fato do desconhecido não ser igual ao conhecido que a ciência é necessária e as surpresas inevitáveis. Se a inovação buscada pode ser antevista na consciência humana é porque a descoberta que permite essa projeção já foi feita no passado e o trabalho agora é de viabilizá-la tornando seus custos factíveis. Quem poderia prever que os professores Andre Geim e Kostya Novosolev da Universidade de Manchester descobririam o grafeno ao usarem fita adesiva para remover flocos de uma placa de grafite? Por outro lado, se não fosse óbvia a importância econômica da pesquisa em torno dos novos materiais, esta universidade não financiaria um Centro de Mesociência e Nanotecnologia onde ambos trabalhavam juntos. O fato é que hoje os laboratórios ao redor do mundo estão explorando o enorme potencial do grafeno, o material mais fino, leve, resistente e maleável conhecido até o momento.

Os resultados da pesquisa em ciência, seja ela de base ou aplicada, transpostos à produção podem resultar em novos produtos e também em novos processos. Kuznets observou que o fato de uma inovação dizer respeito a um produto ou a um processo é algo que depende muito da perspectiva que se adota. Rosenberg concorda e reforça:

As inovações de processo envolvem tipicamente equipamentos ou maquinário novos, nos quais tais inovações estão corporificadas; esse maquinário ou tais equipamentos constituem uma inovação de produto, do ponto de vista da firma que os produz (ROSENBERG, 2006, p. 19).

O autor cita o exemplo do conversor Bessemer, uma espécie de fornalha refratária que permite a produção em massa de aço, reduzindo enormemente o custo da produção. Esta era uma inovação de processo para os fabricantes de ferro e aço, mas uma inovação de produto para os fornecedores de equipamentos para a indústria.

Salvo algumas exceções, como uma nova forma de se fazer um cálculo de cabeça, que pode ser considerado uma tecnologia mental ou uma inovação organizacional, uma nova tecnologia está normalmente associada à construção de uma nova máquina ou à modificação de uma já existente. Mesmo novos programas de computador, que podem ser descritos como uma sequência de instruções lógicas que, por definição, poderiam ser rodados em qualquer máquina universal, na prática, exigem, por conta dos impactos dos limites de recursos nos tempos de execução, uma renovação constante dos equipamentos. Desta forma, a ubiquidade do sistema de máquinas quando falamos em desenvolvimento tecnológico e produção industrial permite que seu processo de conformação nos sirva de roteiro para entendermos as transformações históricas que o desenvolvimento tecnológico operou no capitalismo, a partir do entendimento, na esfera da produção de valor, da máquina como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, como propões Bevilaqua (2015), mas, também, na esfera da produção de valores de uso, da “história da formação dos órgãos produtivos do homem social”, como reificação do corpo humano (MARX, 1996, l.1, v. 2, p. 8).

A construção das máquinas se torna o elo por excelência entre a ciência e a produção, pois é “a análise originada diretamente da ciência e a aplicação de leis mecânicas e químicas que possibilitam à máquina executar o mesmo trabalho anteriormente executado pelo trabalhador” (MARX, 2011, p. 587).

1Em 13 de junho de 2002, durante o governo Bush, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado ABM.