Stephan Jay Gould, biólogo, paleontólogo e historiador da ciência, que se tornou bastante conhecido por seu trabalho como divulgador da ciência, é o autor de um ensaio no qual define o que batizou como dilema de Cordélia. A referência remete à peça Rei Lear de William Shakespeare, na qual a filha caçula do rei é banida do reino por manter-se honesta e não bajulá-lo a exemplo de suas irmãs Goneril e Regan. Enquanto as duas últimas realizam discursos aduladores, afirmando amar o pai mais do que qualquer outra coisa, Cordelia responde a seu pai dizendo que se limita a “amar e ficar em silêncio”, o que enfurece o Rei, levando-o a sua drástica decisão. O erro de Lear lhe custa caro, suas duas outras filhas conspiram contra ele em um trágico enredo que termina com a morte do reu e de todas as suas três filhas.
Gould chama atenção para alguns problemas da produção científica, a começar pela não publicação de resultados negativos. Da mesma forma que o rei pretere o silêncio de sua filha caçula em prol das manifestações favoráveis de suas filhas mentirosas, as publicações acadêmicas não se interessam pelos resultados negativos.
A não publicação desses resultados acaba escondendo a não replicabilidade de muitos experimentos. Como exemplifica Gould:
Afirmações espetaculares na medicina sobre a eficácia de certo tratamento (particularmente para doenças crônicas e fatais como câncer e AIDS) podem ser propagandeadas após um resultado positivo (frequentemente obtido em um estudo baseado em uma amostra muito pequena). Estudos posteriores e mais extensos podem fracassar em duplicar os resultados positivos, na prática refutando o valor do tratamento. Mas esses resultados negativos subsequentes podem aparecer apenas em publicações altamente especializadas lidas por audiências mais restritas e, como não-histórias, não chegam à atenção da mídia, permitindo que as pessoas continuem a depositar confiança e desperdiçar tempo precioso seguindo procedimentos inúteis. (1995, p. 124, tradução nosssa)
Porém, em seu ensaio, Gould não reduz o dilema de Cordélia a essa questão da não publicação de resultados negativos, porque com relação a esta e ao enviesamento correspondente, com mais cuidado e com a utilização de ferramentas estatísticas as perguntas corretas podem ser feitas e bons cientistas podem perceber os resultados negativos, mesmo que estes sejam massivamente subreportados. Ele pede, então, que consideremos um problema muito mais insidioso e mais próximo do dilema entre Cordélia e seu pai: “E se nosso mundo conceitual excluir toda a possibilidade de reconhecermos um resultado negativo como um fenômeno? E se simplesmente não pudermos ver ou mesmo pensar sobre uma alternativa diferente e significativa?” (GOULD, 1995, p. 126)
Neste caso, a estatística pode ajudar pouco, pois seus procedimentos permitem excluir resultados anômalos extremos, que são considerados erros de medição ou mesmo exceções muito raras, mas não servem para refletir acerca dos pressupostos teóricos não conceituados que antecedem os experimentos realizados. Como colocam Levins e Lewontin: “A ciência tornou-se muito sofisticada na correção das subjetividades idiossincráticas de seus praticantes, mas não dos vieses compartilhados por comunidades de estudiosos” (LEVINS; LEWONTIN, 2007).
Gould afirma que a solução do dilema de Cordélia passa por uma “revisão mais extensa do nosso arcabouço teórico. Este não pode ser resolvido a partir de dentro, pois a teoria existente definiu sua ação como uma negação, ou não-fenômeno” (GOULD, 1995, p.127). A necessidade de superar-se os efeitos do dilema de Cordélia é uma argumento favorável a uma mudança de paradigmas.
A honestidade de Cordélia advém do fato dela saber distinguir entre amor e propriedade. O fato de ela amar seu pai não significa que ela deva invariavelmente fazer o que ele pede. A ciência, cativa do capital, enfrenta dilema semelhante. Em vez de um terço das terras do reino, o capital compra a ciência através da concessão de financiamento das pesquisas. Como vimos no subcapítulo no qual abordamos a crise de financiamento, este direcionamento se aprofunda na medida em que o investimento público cede espaço para o investimento privado direto, mesmo que indiretamente os recursos venham do fundo comum da sociedade através de renúncias fiscais. Isso possibilita a formação de verdadeiros consensos e o silenciamento das vozes dissidentes. Desta forma, a ciência se afasta da realidade e passa a cumprir um papel de encenação, tornando os cientistas meros personagens a declarar textos que fazem parte de um roteiro já combinado, mesmo que estes não tenham consciência disto.
Existe uma infinidade de exemplos de como as grandes corporações manipularam estudos científicos para que os mesmos não contradissessem seus interesses. Falamos aqui de fraudes, compra de consciências, mentiras e omissões para proteger as empresas de ações judiciais.
Um caso extremamente emblemático é o que envolveu Clair Patterson, geoquímico que teve um papel importante na campanha que terminou por banir o uso de chumbo nos combustíveis na maioria dos países.
Patterson tornou-se conhecido por ser um dos responsáveis pelo método de datação urânio-chumbo, utilizando-o para obter em 1956 a primeira estimativa precisa da idade do planeta terra, de 4,55 bilhões de anos. Ele chegou a essa estimativa observando a proporção entre o urânio e o chumbo encontrados no interior do mineral zircão. Como com o tempo o urânio vai se transformando em chumbo, através do processo de decaimento radioativo, e conhecendo a taxa desse decaimento que é constante, Patterson estudou essas concentrações em diferentes pontos da terra e em meteoritos, o que permitiu também que calculasse a datação do nosso sistema solar (PATTERSON, 1956).
Este cientista enfrentou o descrédito e uma intensa campanha de boicote quando sua pesquisa sobre a idade da Terra levou-o a indagar-se sobre a origem do chumbo presente no ambiente, 80 vezes superior ao que ele medira nos depósitos sedimentares oceânicos. Ele chegou a conclusão de que essa contaminação advinha da adição de tetraetilchumbo à gasolina. Em 1965, ele publicou o artigo Contaminated and Natural Lead Environments of Man no qual alertava para os malefícios que o chumbo causava à saúde humana. Muitos especialistas que trabalhavam para a indústria petroleira contestaram energicamente as alegações de Patterson. O nome que mais se destacou na defesa da indústria e pela manutenção da adição de chumbo na gasolina foi o de Robert Kehoe, representante da Ethyl Corporation, produtora de aditivos criada pela General Motors e pela Esso.
Como a pesquisa sobre o uso de chumbo como aditivo era quase que em sua totalidade financiada pela indústria, Kehoe pode controlar os dados que haviam sido coletados impedindo, dessa forma, que verificações independentes fossem realizadas.
Além do envenenamento por chumbo já ter sido observado na antiguidade1, dúvidas sobre a segurança do uso do chumbo como aditivo haviam sido levantadas ainda na década de 1920 após alguns pesquisadores notarem o adoecimento de pessoas que trabalhavam na produção do tetraetilchumbo.
Uma moratória foi decretada e uma conferência convocada em maio de 1925 para discutir se a produção deveria ser permanentemente interrompida. Foi em seu depoimento a essa conferência que Kehoe expôs a lógica do que ficou conhecido como paradigma de Kehoe, ou regra de Kehoe. Ele afirmou, como representante dos pesquisadores da Ehtyl Corporation, que a produção e distribuição de gasolina com chumbo só deveria ser interrompida caso pudesse ser demonstrado acima de qualquer dúvida razoável que o aditivo representava um perigo real. Porém, se esse perigo não pudesse ser comprovado factualmente (“mostre-me os dados”), um produto economicamente benéfico como este não poderia ser descartado com base apenas em opiniões. A produção foi então retomada e a indústria rapidamente se ocupou em demonstrar que não havia alternativa economicamente viável ao tetraetilchumbo. Cabe recordar que a pesquisa de Kehoe contava com o beneplácito do US Public Health Service e da American Medical Association.
Como resultado deste raciocínio, o ônus da prova recaía sobre os críticos da utilização do aditivo. Caso os resultados destes fossem inconclusivos, o tetraetilchumbo deveria ser permitido. Ou seja, neste paradigma, a ausência de evidências é tomada erroneamente como uma evidência da ausência de riscos, o que favorecia os interesses econômicos da indústria sobre a precaução com relação à saúde. O princípio da precaução é justamente o oposto: existe um risco possível até a prova do contrário. A falta de dados conclusivos produz uma situação muito confortável para estas corporações, porque sempre podem alegar o desconhecimento dos efeitos caso o produto seja posteriormente comprovado como perigoso. E nesse meio tempo, durante décadas, os lucros fluem enquanto os métodos e os resultados dos adversários sempre podem ser contestados com a alegação de que mais dados são necessários para a formação de uma certeza.
Apenas em 1986 a adição de tetraetilchumbo foi proibida nos Estados Unidos. No Brasil não tardou muito, a proibição foi em 1989, por conta da possível obtenção do mesmo efeito através da adição do etanol à gasolina. Segundo Kitman, a regra de Kehoe “representou um modelo para as indústrias do amianto, tabaco, pesticidas e nuclear […] para se esquivarem de evidência clara de que seus produtos eram perniciosos ao esconderem-se sob o manto da incerteza científica” (KITMAN, 2000). O laboratório dirigido por Kehoe também foi responsável por certificar a segurança dos gases refrigerantes fluorados, ou CFCs, “outra patente da GM insensível ao meio ambiente que ganharia centenas de milhões antes de ser proibida” (KITMAN, 2000).
Mais recentemente, em 2017, um novo caso de interferência desastrosa das corporações na produção científica veio à tona. A associação comercial que reúne as empresas do setor açucareiro financiou, em 1965, três acadêmicos de Harvard que publicaram uma revisão de estudos sobre os efeitos do açúcar e minimizaram a associação entre açúcar e doenças cardíacas. Por outro lado, difamou a ingestão de gordura saturada, colocando-a como a principal causa de problemas no coração. Este estudo ajudou a pavimentar o caminho para as recomendações nutricionais que perduraram por décadas e que apenas agora estão sendo revistas. Mais de 50 anos depois, a ciência está reabilitando o consumo de gorduras e revendo o consumo de carboidratos. Conforme uma equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia investigou e denunciou, cinco anos após a publicação desse primeiro estudo, a Sugar Association encomendou um novo teste sobre os efeitos do açúcar em animais. Quando os novos resultados revelaram uma realidade bem diferente, ligando a ingestão de açúcar a diversas doenças cardíacas, além de câncer de bexiga, a Associação simplesmente parou de financiar o estudo e este foi encerrado não tendo seus resultados divulgados (KEARNS, 2017).
Estes casos são considerados fraudes abertas, deformações que fazem corar a comunidade de cientistas, utilizados depois como exemplos nos livros didáticos de comportamentos contrários ao verdadeiro compromisso da ciência com a verdade. Contudo, essa avaliação é, salvo raras exceções, a posteriori, décadas após o erro ter permanecido invisível a toda uma comunidade de cientistas. Adentramos um problema muito mais complexo, e relacionado com os paradigmas reinantes em cada campo do conhecimento, o enviesamento compartilhado por toda uma comunidade de cientistas.
1Vitrúvio: “A água conduzidas por canos de argila é muito mais saudável do que a conduzida por tubulações de chumbo, realmente o chumbo parece nocivo, pois dele se obtém o alvaiade [PbCO3, carbonato de chumbo], que é prejudicial para o ser humano. Portanto, se o que é gerado a partir dele é pernicioso, não pode haver dúvida de que ele próprio não pode ser saudável. Isso pode ser verificado observando-se os que trabalham com chumbo, que são de cor pálida; pois, fundindo chumbo, os vapores se fixam nos diferentes membros, e os queima diariamente, destroem o vigor do sangue; a água não deve, portanto, sob hipótese alguma, ser conduzida em canos de chumbo se quisermos que seja saudável (VITRUVIUS, 1960, VIII.6.10-11, tradução nossa ).
Em sua conferência de 1990 na Universidade de Toronto, intitulada Biologia como Ideologia, Richard Lewontin teceu interessantes observações sobre como a ciência ocupou, em uma sociedade mais secular e racionalista, um papel que antes era exclusivo da Igreja: o de prover justificativas para a consciência popular acerca dos fenômenos sociais. Para este geneticista, vencedor do prêmio Crafoord1 em 2015, a ciência como as demais atividades produtivas é “uma instituição social completamente integrada e influenciada pelas estruturas das demais instituições sociais” (LEWONTIN, 2000). Os problemas que ela lida, as ferramentas das quais ela dispõe, e até os resultados obtidos são fortemente influenciados pelas predisposições que advêm da sociedade na qual vivemos. A produção científica é uma atividade produtiva que consome tempo e dinheiro, então é natural que ela seja dirigida pelas forças que detêm o controle sobre o tempo e o dinheiro. Ela usa mercadorias e é parte do processo de produção de mercadorias. O capitalismo não só necessita dos efeitos econômicos da produção científica, mas ele se apropria ativamente das ideias científicas que lhe convém para sustentar as estruturas sociais que garantem sua dominação. Esse é um processo de mão dupla: o controle do capital sobre os cientistas e também o uso das ideias científicas pelo capital que justificam sua visão de ciência como ideologia (LEWONTIN, 1991).
Veremos nesse subcapítulo exemplos de duas formas diferentes através das quais essa ideologia silencia as vozes dissidentes e se perpetua: as fraudes abertas e os enviesamentos que se tornam quase invisíveis por serem compartilhados por toda uma comunidade de cientistas.
1Prêmio outorgado pela Academia Real de Ciências da Suécia nos campos não cobertos pelo Nobel
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