Superbactérias: ficção científica ou mazela do capitalismo?

Superbactérias: ficção científica ou mazela do capitalismo?

A humanidade enfrenta problemas cada vez mais complexos e globais, que emergiram com a revolução industrial e a forma com a qual o capitalismo levou ao extremo sua visão unilateral de aplicação da ciência.

Um Relatório Global da OMS (Organização Mundial da Saúde), intitulado “Resistência Antimicrobiana”, trouxe a atenção da mídia para um problema ecológico global com um potencial catastrófico para a humanidade comparável ao do aquecimento global.

O prefácio do texto, assinado pelo Dr Keiji Fukuda, afirma taxativamente: “Uma era pós-antibióticos, na qual infecções comuns e pequenos ferimentos podem matar, longe de ser uma fantasia apocalíptica, é na verdade uma possibilidade muito real para o século 21”.

Estamos assistindo ao surgimento de cepas de bactérias totalmente resistentes a todo o tipo de medicação desenvolvida até então. Esse relatório traz à tona o caso de sete espécies de bactérias, tanto gram-positivas, quanto gram-negativas (afetadas por diferentes classes de antibióticos), que desenvolveram cepas resistentes às drogas de último recurso.

Essas drogas, com nomes complicados como carbapenêmicos, fluoroquinolona e ciprofloxacina, são usadas apenas no caso de pessoas com infecções que não puderam ser controladas com outros medicamentos.

No caso delas falharem, não há muito que a medicina atual pode fazer.


O Brasil tem um papel destacado neste debate.

A brasileira Carmem Lúcia Pessoa-Silva é chefe do programa da OMS para combate a micróbios resistentes a antibióticos. Em recente entrevista a um blog de divulgação científica, ela foi categórica ao falar sobre a necessidade da produção de antibióticos não ser regida pela lógica capitalista, e aponta os culpados por essa situação:

“O antibiótico, então, não pode mais ser visto como um bem comercial.Tem de ser visto como um bem público. Nós deveríamos desconectar os custos de desenvolvimento e de fabricação do retorno financeiro com as vendas. É para projetar essa transição que a OMS está promovendo agora diálogos com a indústria farmacêutica e a indústria alimentar.

Esta outra é uma das grandes responsáveis pelo surgimento de bactérias resistentes, também por uma falha da economia de mercado que permite o uso de antibióticos para engorda na pecuária, para prejuízo da medicina humana”.

No que consiste esse problema? Com certeza, não se trata de nenhuma novidade. Alexander Flemming, responsável pela descoberta da penicilina em 1928, ao receber o prêmio Nobel, em 11 de Dezembro de 1945, alertou:

“Mas eu gostaria de fazer uma advertência. A penicilina é para todos os efeitos não-tóxica, por isso não há necessidade de se preocupar com uma overdose ou envenenamento do paciente. Pode haver, contudo, um risco de subdosagem. Não é difícil criar micróbios resistentes à penicilina em laboratório, expondo-as a concentrações não suficientes para matar, e o mesmo tem acontecido ocasionalmente no corpo”.

As bactérias se reproduzem a uma velocidade muita rápida, e essa reprodução, como a de qualquer ser vivo, está sujeita à introdução de mutações, que podem propiciar uma resistência aos efeitos dos antibióticos.

Dessa forma, quando o tratamento mata uma grande porcentagem, mas não a totalidade de uma certa colônia de bactérias, as que sobram vivas podem portar o gen resistente. Após um certo tempo e do repovoamento do ambiente, todas as bactérias da colônia exibem a resistência.

Como o próprio Flemming relatou, o surgimento de bactérias resistentes a penicilinas já havia sido identificado antes mesmo do lançamento comercial da mesma nos anos 1940. O termo “superbactérias”, usado pela mídia de forma sensacionalista não ajuda em nada na educação acerca do fenômeno.

Para os biólogos marxistas, não se trata de um roteiro de ficção científica, mas sim das condições materiais da vida das pessoas. Levins e Lewontin, em seu artigo “Será o capitalismo uma doença?” lembram do exemplo da Praga na Europa.

Aprendemos nos livros de história que a Praga foi levada à Europa através dos navios que vinham da Ásia. Na verdade, essa explicação monocausal é falha. Ela não leva em consideração que a Praga já havia aparecido no século VI, durante o final do Império Romano.

O que nos leva à explicação mais plausível de que a Praga entrou na Europa diversas vezes, mas que ela teve que encontrar condições específicas para prosperar, um momento no qual a população se tornou mais vulnerável a doenças transmitidas por ratos, através de uma crise social que levou à miséria.

A indústria farmacêutica está criando um fenômeno que coloca em risco milhões de vidas humanas. Porém uma verdadeira política de saúde pública não significa derrotar apenas os capitalistas da indústria farmacêutica, mas esse sistema como um todo. Como a OMS alertou, um dos principais responsáveis pelo surgimento desse problema é o uso de antibióticos nas rações de animais, como a vancomicina que é dada aos frangos e que acaba chegando pelo garfo ao nosso corpo.

É fundamental uma compreensão mais totalizante desse problema, relacionando-o com todos os outros aspectos da vida no planeta e mais especificamente numa sociedade de classes.

As bactérias são os primeiros habitantes do planeta terra, tendo existindo por quase 3 bilhões de anos, antes do surgimento dos primeiros seres multicelulares, e ainda continuam sendo, de acordo com muitos critérios, a forma de vida dominante em nosso planeta.

Em termos de biomassa total, em todo o planeta, as bactérias, apesar do seu tamanho microscópico, são campeãs, acima das plantas e dos animais somados. Em uma única grama de solo existem em média 40 milhões de bactérias.

Não podemos abordar essa questão como um problema de competição entre nós e elas. Na verdade, para cada célula em nosso corpo, temos pelo menos 10 bactérias que o habitam. Muitas dessas bactérias, como as presentes em nosso sistema digestivo são absolutamente essenciais para a vida humana.

Um ser humano totalmente isento de germes não poderia sobreviver. Na verdade, cada pessoa é um ecossistema, no qual nosso DNA e o de trilhões de bactérias convivem em simbiose.

Não existe uma forma simples de se abordar um problema que envolve um processo dinâmico, como é a vida, com uma infinidade de variáveis. Quando utilizamos um antibiótico de amplo espectro, é como se jogássemos uma bomba atômica nessa comunidade.

As bactérias mais adaptadas ao nosso organismo e com a qual convivemos bem, são as que tem menos defesas, já que não enfrentam oposição do nosso sistema imunológico. Essas bactérias competem diretamente com as que nos são nocivas.

Ao matá-las estamos na verdade destruindo um sistema de proteção que criamos durante toda a coevolução entre nosso espécie e essas bactérias.

A única solução para este problema é a mudança de modo de produção, de forma a estabelecer o poder político nas mãos da classe operária, dos produtivos, que constituem o aspecto consciente da humanidade.

Apenas com novos valores podemos abordar esse problema de forma integral, com uma visão ecológica e social.

Texto publicado originalmente em junho de 2014 na Edição nº 473 do Jornal inverta

A Crise da Responsabilidade Acadêmica e a Crise do produtivismo

A Crise da Responsabilidade Acadêmica e a Crise do produtivismo

Do ponto de vista da sociologia, uma outra voz que se soma à percepção de uma crise generalizada na produção científica é a de Lindsay Waters, editor de humanidades da Harvard University Press, uma dais mais importantes editoras acadêmicas dos Estados Unidos.

Em seu provocativo ensaio Inimigos da Esperança Publicar, Perecer e o Eclipse da Erudição, ele traça um complexo cenário de deterioração da produção do saber, referindo-se à “crise da responsabilidade (accountability) acadêmica1”, “eclipse do valor”, “crise das monografias”, crise de “superprodução”, “crise generalizada da avaliação” (judgment) (WATERS, 2004, passim, tradução nossa). Para ele, a erosão do sistema de publicações com o boom de produção, caracterizado por um forte crescimento no número de artigos publicados a partir dos anos 1960, resulta de uma cultura de hiperinflação (WATERS, 2004, p. 22, tradução nossa).

O “problema é basear o mandato na quantidade de publicações, publicações que poucos leem” (WATERS, 2004, p. 7, tradução nossa). “Nos últimos 30 anos, passamos de vender um mínimo de 1.250 livros de cada título de humanidades para 275 livros” (WATERS, 2004, p. 16, tradução nossa).

Em sua ácida crítica ao modelo vigente, Waters alerta para o momento em “que o mercado se torne nossa prisão e que o valor do livro seja minado” (WATERS, 2004, p. 4, tradução nossa). Também chama atenção para o fato de que este problema não se restringe apenas à área das humanidades (WATERS, 2004, p. 18, tradução nossa) e diagnostica:

Adentramos a Zona Cinzenta (Twilight Zone) da pesquisa acadêmica, e agora a demanda por produtividade está levando à produção de muito mais nonsense. Em tempos como estes, pesquisadores inescrupulosos e confusos realizam falsas assertivas que guardam aparência de interessantíssimas, mas também inverificáveis assertivas. Podemos ver em toda parte ao redor de nós o eclipse do valor em uma cultura de hiperinflação. Editores de periódicos, especialmente, estão percebendo que eles não têm o tempo necessário para avaliar porque eles precisam manter a linha de montagem em movimento. (WATERS, 2004, p. 22, tradução nossa)

É neste contexto que o paradigma de publicar ou perecer leva ao que é chamado de ciência salame, quando se busca fatiar os resultados de uma pesquisa na menor unidade publicável, o menor quantum possível de conhecimento em uma publicação, de forma a inflar o número de publicações, maximizando o ranking do pesquisador de acordo com as métricas quantitativas. As publicações circulam em um ritmo cada vez maior, contudo carregando em si cada vez menos resultados inovadores cientificamente relevantes.

Fica evidente que esta velocidade de circulação das publicações não corresponde aos interesses do acúmulo de conhecimento e sim à própria velocidade de rotação do capital, que precisa ser ainda mais acelerada quando a crise se manifesta. Até neste aspecto, de uma crise na qual o sistema tem que girar a uma velocidade cada vez maior, pois a cada ciclo o valor incorporado é menor, a ciência da ciência se assemelha à do capital em geral.

Esse descompasso levou em 2011 um grupo de pesquisadores alemães, entre eles o neurocientista Jonas Obleser, da Sociedade Max Planck, a publicar o Manifesto Ciência Lenta, no qual relembram que:

A ciência precisa de tempo para pensar. A ciência precisa de tempo para ler e tempo para falhar. A ciência nem sempre sabe sobre o que pode estar neste momento. A ciência se desenvolve de forma instável, com movimentos bruscos e saltos imprevisíveis para a frente – ao mesmo tempo, no entanto, arrasta-se em uma escala de tempo muito lenta (SLOW SCIENCE MANIFESTO, 2010, tradução nossa).

1 O termo em inglês accountability pode ser apenas parcialmente traduzido para responsabilidade, pois o conceito traz outras cargas semânticas como prestação de contas, ação ética, transparência e credibilidade.