A Revolução Neolítica

A Revolução Neolítica

Caral, local da Revolução Neolítica nos Andes

Se a produção de ferramentas, marco inicial do Paleolítico, está na base do processo de conformação biológica da nossa espécie, e, posteriormente, o surgimento do comportamento simbólico inicia a fase superior desse período, na qual o Homo sapiens (e os extintos neandertais) passam a exibir comportamentos que os distinguem de todos os seus ancestrais chamados de arcaicos, o Neolítico, iniciado há cerca de 11 mil anos, corresponde ao aparecimento da sociedade civil e da política, após a agricultura e a domesticação dos animais levarem à produção de excedente.

A transformação radical na relação entre o homem e a natureza não se limitou, desta vez, à manipulação de objetos inanimados como pedras, metais e madeira: os seres humanos passaram a dominar outras espécies biológicas, principalmente ao controlarem o ciclo reprodutivo dessas. A agricultura é a face mais saliente deste processo, desenvolvida independentemente em pelo menos sete regiões distintas do globo:

Na região do Crescente Fértil foram encontradas evidências de cultivos, entre outros, de cevada, trigo e linho; na China, ocorreu a domesticação do milhete e do arroz; na África foi domesticado o café, o ensete e o khat; em Papua Nova Guiné, o inhame e outros tubérculos; na América Central, iniciou-se a plantação da abóbora, do milho e do feijão; nos Andes foram encontrados vestígios da plantação de batatas e da quinoa, enquanto que no litoral do Peru, na região próxima à antiga cidade de Caral (primeira grande cidade descoberta no continente) se destaca a domesticação do algodão; e, finalmente na Amazônia, na região do alto rio Madeira, berço do tronco linguístico Tupi, foram domesticadas a mandioca, a pupunha, a pimenta, o amendoim, o abacaxi e o guaraná (BEVILAQUA, 2015, p. 249).

Com os dados que dispunha à época, principalmente com base no trabalho de Morgan, Engels analisou em detalhes este processo em sua obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Conforme o título evidencia, a revolução tecnológica agrícola e pastoril teve profundas implicações na organização da sociedade humana, sendo destruídas as comunidades baseadas nas gens, conjuntos de famílias, em prol de uma nova organização social baseada na divisão dos seres humanos em classes sociais, definidas a partir da produção e apropriação dos valores de usos.

Além das plantas, neste período foram também domesticados os animais que além de serem meio de transporte criaram o intercâmbio entre distintas comunidades:

Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs, couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez, o intercâmbio regular de produtos (ENGELS, 1964, p. 57).

Completando a domesticação das outras espécies, os seres humanos também passaram a cultivar fungos e bactérias, o que nos deu controle sobre o processo de fermentação e da produção de cremes azedos.

O desenvolvimento tecnológico “tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção”, o que tornou, pela primeira vez conveniente amealhar força de trabalho. Logo, “os prisioneiros foram transformados em escravos”. Assim, “da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados” (ENGELS, 1964, p. 57).

No campo da organização humana estão dadas as condições para o surgimento do Estado, em um processo de dissolução da antiga organização gentílica através da consolidação do

o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário à gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia. (ENGELS, 1964, p. 36).

Com mais pessoas liberadas da produção de alimentos, outros ramos da produção floresceram. Engels chama atenção para dois particularmente importantes “o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de minerais e o trabalho com metais fundidos” (ENGELS, 1964, p. 57). Esta lista pode ser estendida com outras invenções que causaram profundos impactos: remos e velas que transformaram a navegação, rodas que permitiram a construção de carros, moedas e outros objetos usados como meio de troca, mós para triturar grãos. Isso sem contar a invenção que talvez seja a mais importante para o desenvolvimento ulterior da ciência: a invenção das proto-escritas, os sistemas simbólicos que antecederam a escrita propriamente dita. É o caso dos símbolos Jihau, um conjunto de 16 signos que foram gravados em carapaças de tartarugas encontradas na província de Henan, na China e datadas como tendo sido feitas no sétimo milênio antes da nossa era, assim como é o caso, também, dos Símbolos Vinča, gravados em artefatos arqueológicos encontrados nos Balcãs e produzidos no sexto milênio antes da nossa era.

Ainda que os pesquisadores não considerem esses símbolos como um sistema acabado de escrita, pois, apesar dos mesmos serem constituídos de ideogramas ou pictogramas que carregam informação, provavelmente não codificavam nenhuma linguagem natural, estes são as bases para o surgimento, na Idade do Bronze, período imediatamente posterior ao Neolítico, da escrita, o que ocorreu de forma independente entre os sumérios, os egípcios, os chineses e os olmecas. Só então a codificação de enunciados passou a ser feita de forma que um leitor pudesse reconstruí-los, com um certo grau de precisão, sem precisar conhecer antecipadamente o contexto no qual o texto foi produzido, diferentemente do caso das proto-escritas, que, a exemplo das pinturas rupestres do Paleolítico, provavelmente nunca serão decifradas.

O desenvolvimento da escrita, compreendido de forma mais global desde as primeiras manifestações simbólicas, permitiu que a transmissão de conhecimento pudesse atingir um patamar muito superior ao da mera oralidade, tornando-se, a partir da imprensa de Gutemberg, uma condição sine qua non para o surgimento da revolução científica.

Concluindo esta digressão sobre o Neolítico, cabe notar sua característica de elo entre a revolução paleolítica que o antecedeu em alguns milhões de anos, e a revolução industrial que o sucedeu apenas 10 mil anos depois. Se este pode ser considerado um processo similar à primeira, no que diz respeito ao papel do desenvolvimento tecnológico na transformação do processo de trabalho e em todas as mudanças que isso acarretou para a existência humana, por outro lado, o surgimento das classes sociais que teve como pré-requisito o acúmulo de excedentes, lança luz sobre a transformação que a revolução industrial pode suscitar, tornando anacrônicas as classes sociais através de uma nova qualidade na produção de excedentes. Contudo, nunca é demais frisar que tanto o surgimento das classes sociais no Neolítico quanto a possibilidade de sua superação no capitalismo, modo de produção que simplificou e elevou esse antagonismo ao paroxismo, não se deram por uma simples consequência mecânica do desenvolvimento das forças produtivas, mas sim mediados por conflituosas relações humanas, logo sociais e políticas, batizadas de luta de classes pelos socialistas do século XIX.

Justamente o fato do desenvolvimento das forças produtivas ser ao mesmo tempo causa e consequência das relações sociais é que permite reunificar, na análise do modo de produção capitalista, o processo de produção de valor de uso e o processo de produção de valor, não apenas das mercadorias em geral, mas também da produção científica em especial.

As Revoluções do Neolítico, do Paleolítico e Industrial

As Revoluções do Neolítico, do Paleolítico e Industrial

Como já afirmamos, a identidade entre revolução industrial e capitalismo não permite afirmar que os avanços técnicos tenham sido inaugurados com este modo de produção. Como lembra Santos, um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas já é um pré-requisito para o surgimento deste:

O modo de produção capitalista surge num estágio bastante elevado da luta do homem para submeter a natureza. De fato, este modo de produção surge como consequência do alto desenvolvimento das forças produtivas devido à expansão das indústrias e do comércio mundial (SANTOS, 1983, p. 11)

Esta correspondência entre revolução industrial e capitalismo pressupõe apenas “um novo patamar da relação entre o homem e a natureza, de forma análoga à objetivação do corpo humano nas ferramentas produzidas desde o paleolítico” (BEVILAQUA, 2015, p. 251).

Engels, ao mesmo tempo que reconhece a importância da revolução industrial e seu significado dentro da luta de classes, logo seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais, demonstra também o outro lado do processo de ruptura, a continuidade da mudança tecnológica ao longo da história da humanidade, inclusive no período que antecedeu a conformação das classes sociais, remontando à constituição da nossa espécie, como explica o título da sua obra, inacabada e publicada postumamente, O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, na qual podemos ler que “[o trabalho] é a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem”. (ENGELS, 2010A, p. 452). Na linha de Engels, Álvaro Vieira Pinto, em obra também publicada postumamente, O Conceito de Tecnologia, critica a expressão “era tecnológica” para descrever o período contemporâneo. Para ele, se tratava de uma construção ideológica apologética do sistema, para “embriagar a consciência das massas, fazendo-as crer que tem a felicidade de viver nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade” (PINTO, 2005, p. 41). Isso em um mundo no qual o domínio da tecnologia encontra-se nos centros imperialistas, cabendo ao mundo periférico a condição de paciente receptor das inovações técnicas. Em sua formulação, Pinto nota que no processo de sua constituição, os seres humanos adquirem a capacidade de projetar (teleologia), ao mesmo tempo em que convertem em seres sociais, algo necessário à produção do que foi projetado. Acompanha-o Frigotto (2006), para quem “o trabalho é a categoria ‘ontocriativa’ da vida humana, e o conhecimento, a ciência, a técnica e a tecnologia e a própria cultura são mediações produzidas pelo trabalho na relação entre os seres humanos e os meios de vida”.

Não é possível falar em trabalho em falar sem desenvolvimento da técnica, afinal, como também nota Engels (2010a, p. 452), “O trabalho começa com a elaboração de instrumentos”, ou seja, também podemos definir o ser humano por sua capacidade tecnológica.

Para ROSENBERG (2006, p. 17),

[…] num sentido fundamental, a história do progresso técnico é inseparável da história da própria civilização, na medida em que trata dos esforços da humanidade para aumentar a produtividade sob uma gama extremamente diversificada de condições ambientais.

Desta forma, a Revolução Industrial pode ser colocada em uma perspectiva ainda maior, de conformação e transformação da existência humana a partir do trabalho, perfilando-se ao lado de dois outros grandes processos revolucionários muitas vezes olvidados, as revoluções do Paleolítico e do Neolítico.