A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

A maquinaria, os órgãos sociais da produção subsumidos ao conceito de capital

Para entendermos o surgimento da indústria a partir do materialismo histórico, é necessário compreendermos o fato, demonstrado por Bevilaqua (2016), de que no método de Marx a máquina deve ser entendida como uma categoria econômica subsumida ao conceito de capital, o que contrasta com a abordagem mais histórico-descritiva de Rosenberg. Deve-se, primeiramente, entender o papel da máquina nas transformações ocorridas no processo de produção de valores de uso, um papel que a distingue da ferramenta, pois se ao longo de todo o período pré-industrial da história da humanidade era a força de trabalho o ponto de partida do revolucionamento do modo de produção, na grande indústria este ponto de partida está no meio de trabalho (MARX, 1996, Livro 1, v. 2. p. 8). Em contraste com a ferramenta e mesmo com a manufatura, o sistema de máquinas relativiza todos os limites impostos pela natureza do corpo humano à produção, o que é um pré-requisito para a aplicação extensiva e sistemática da ciência na produção.

O sistema de máquinas e aplicação da ciência na produção ocorrem após um longo desenvolvimento do processo de trabalho, durante o qual este se torna cada vez mais social:

o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho pressupõe cooperação em larga escala, como só com esse pressuposto é que podem ser: organizadas a divisão e a combinação do trabalho; poupados meios de produção mediante concentração maciça; criados materialmente meios de trabalho apenas utilizáveis em conjunto, por exemplo, sistema de maquinaria etc.; postas a serviço da produção colossais forças da Natureza; e pode ser completada a transformação do processo de produção em aplicação tecnológica da ciência. (MARX, 1988, l. 1, v. 2 p. 255-256).

Já na perspectiva do processo de produção de valores, deve-se partir da concepção da máquina como capital constante em geral, ou seja, como trabalho morto objetivado, valor cristalizado. “Neste sentido, a máquina é um armazenador de trabalho vivo, que pode ser despendido em um outro ciclo produtivo” (BEVILAQUA, 2015, p. 256). Mas, além disto, no processo de produção de valores, se revela uma nova função da máquina que demarca novamente sua distinção da ferramenta e que vai além da mera redução de custos. Conforme Marx nota, o móbil da burguesia ao investir no desenvolvimento da maquinaria é: “baratear a mercadoria e, mediante o barateamento da mercadoria, baratear o próprio trabalhador.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 1, p. 435).

Desta forma, a maquinaria aparece como produto da luta de classes, arma da burguesia contra o proletariado, o que está na base das razões históricas do surgimento do movimento de resistência dos ludistas. Prova disso é que seu emprego se dá primeiramente não nos locais onde a mão de obra era escassa, mas justamente na região da Inglaterra onde se concentrava um enorme exército industrial, o qual seu emprego regulava e disciplinava.

Da mesma forma, a luta interna entre a burguesia é fundamental para compreendermos a difusão das máquinas:

este papel só faz sentido ao observar-se a tendência à equalização da taxa de lucro entre os capitalistas que atuam em diversos ramos. A adoção das máquinas apenas se justifica em um mercado no qual se confrontam diversos capitalistas, sejam eles os primeiros industriais que expropriaram os tecelões de Lancashire no século XVIII, ou os grandes monopólios que nos dias de hoje travam guerras entre si. Sem isso a mecanização não se sustentaria; não seria possível a sobrevivência dos setores com alta composição orgânica se eles não fossem capazes, através das trocas desiguais, de se apropriarem da mais-valia produzida nos outros ramos, onde o uso do capital variável é mais intenso (BEVILAQUA, 2015, p. 257).

Isso explica porque a classe capitalista é a primeira classe dirigente na história cujos interesses estão indissoluvelmente ligados à mudança tecnológica e não à manutenção do status quo. Essa característica do modo de produção capitalista, que embutiu a constante renovação tecnológica à sua dinâmica econômica, levando à Revolução Industrial e à transformações que não encontram paralelo na história pós-neolítica, foi descrita por Marx e Engels na famosa passagem do Manifesto Comunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras (MARX, 1998, p. 43).

Em sua existência como corporificação do capital, a máquina, vista como produto ou como processo industrial, transforma a ciência em uma força produtiva dominada pelos capitalistas:

O desenvolvimento do meio de trabalho em maquinaria não é casual para o capital, mas é a reconfiguração do meio de trabalho tradicionalmente herdado em uma forma adequada ao capital. A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo de produção. A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo, e o capital fixo, na medida em que o capital é considerado na relação consigo mesmo, como a forma mais adequada do capital de modo geral (MARX, 2011, p. 581-582).

Desta forma, mesmo sendo o acúmulo de séculos do trabalho de cientistas, que, em muitos casos se converteram em proletários assalariados, ela se apresenta como alheia aos trabalhadores, levando à mistificação do capital, à máxima fetichização da mercadoria:

A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina (MARX, 2011, p. 580-581).

Esse processo de estranhamento dos trabalhadores com relação à sua própria produção, à medida que seu corpo foi sendo objetivado nas três partes que, segundo Marx, constituem o sistema de máquinas: máquina-ferramenta, motor e mecanismos de transmissão e controle, ocorreu (e ocorre) em um longo período histórico de sucessivas ondas de incorporação tecnológica à produção, a Revolução Industrial. A lógica que permite sua divisão em três fases é objeto da análise de Bevilaqua (2015):

transformações nas três partes que conformam o sistema de máquinas, permitem a compreensão da dialética entre as três e, como cada uma delas, dentro de um determinado processo histórico, assume o lugar de polo dinâmico da relação, ditando o ritmo e a direção das transformações operadas nas outras. (BEVILAQUA, 2015, p. 251).