A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação

A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação

Com efeito, ao assumirmos o método de Marx, consideramos que causa e consequência de um processo histórico não existem separadamente ou relacionadas apenas em caminhos de mão única. Desta forma, a crise na produção científica, que pode ser vista como uma consequência da crise econômica, produto, por exemplo, de cortes de investimento no setor, como destacam diversas matérias de jornal, é, ao mesmo tempo, uma das causas da mesma. O método com o qual Marx analisa o capitalismo permite pensar este complexo fenômeno em suas múltiplas determinações, o que leva à definição de uma Crise Orgânica do Capital. Com a conversão da ciência na principal força produtiva, as contradições inerentes à Lei Geral da Acumulação Capitalista (MARX, 1988) levam à erosão do paradigma do valor, conforme antecipou Marx nos Grundrisse, o que emperra a acumulação de capital e, consequentemente, coloca a própria relação-capital em cheque. Além disso, para entender qualquer movimento dialético e a forma como se articula uma unidade de seus contrários, deve-se dar a devida importância à escolha das categorias que nos possibilitam compreender o real significado deste processo.

O ponto de partida que nos permitirá transcender a aparência deste fenômeno é a argumentação apresentada na tese A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação de Aluisio Pampolha Bevilaqua (2015). Em seu trabalho, o autor defende que a crise do capital, momento de autonegação dialética da própria relação-capital, que por sua vez é a relação social dominante da formação econômica-social atual, generaliza-se para todas as esferas da sociedade e se expressa particularmente na produção científica mundial como uma crise de paradigmas. Em trabalho anterior, intitulado A Crise do Capital em Marx e suas implicações nos Paradigmas da Educação, o autor já mostrara como as categorias produção, ciência e educação encontram-se subsumidas à categoria capital através dos conceitos de crise, paradigma e pedagogia. Durante a crise, a ciência, cativa do capital e convertida em mais uma de suas manifestações, precisa desesperadamente ser mensurada como valor de troca, o que entra em choque com seu estatuto de conhecimento organizado e validado através de sua confrontação com a realidade material (na prática). Ele mostra como o caráter dessa crise é responsável pelo descompasso entre os objetivos postulados pela comunidade científica para seu trabalho e os resultados destes percebidos pela sociedade. Trata-se de um processo que se retroalimenta, pois a incorporação da ciência como investimento na produção acentua a erosão do paradigma do valor, logo agrava a crise econômica ao prejudicar a acumulação capitalista de trabalho vivo (BEVILAQUA, 2015, p. 9 e 356) (BEVILAQUA, 2011, p. 235).

Da mesma forma, toma-se como base a tese de Theotonio dos Santos, também referenciada no trabalho de Bevilaqua, que demonstra o impacto da Revolução Científico-Técnica, cujo início pode ser situado após a Segunda Guerra Mundial, quando a ciência passou a ser, cada vez mais, vista como investimento. Este processo, que pode ser classificado como a terceira fase da Revolução Industrial e que deriva na crescente automação da produção, é raiz de profundas transformações, ainda em curso, que apontam para os limites históricos do modo de produção baseado na apropriação privada da riqueza social (SANTOS, 1983, p. 52 e 247;1987, p.275).

Existe uma crise da ciência? A pesquisa da Nature de 2016.

Existe uma crise da ciência? A pesquisa da Nature de 2016.

Quando falamos em crise na ciência, podemos distinguir diversos problemas, alguns deles debatidos abertamente na comunidade científica, outros nem sempre bem enunciados ou definidos, que transparecem como um mal-estar nos meios acadêmicos, enquanto brota no público em geral uma desconfiança a respeito das pessoas apontadas como especialistas. Mesmo com muitas omissões da grande mídia, eventualmente circulam notícias de fraudes envolvendo alguma instituição de destaque, ou ainda ocorre alguma catástrofe não prevista por toda uma comunidade de cientistas.

Entre os grandes problemas contemporâneos que afetam a produção científica, talvez nenhum tema tenha perpassado de forma tão longitudinal o debate entre os mais díspares campos do conhecimento como a questão da Crise de Reprodutibilidade, que se tornou objeto de estudo da filosofia e da sociologia da ciência.

Muitos cientistas e também filósofos da ciência têm se debruçado sobre este problema. Uma de suas faces mais palpáveis, que tem um maior destaque na imprensa e nas publicações acadêmicas, e para a qual surgiram diferentes iniciativas profiláticas, é a Crise de Reprodutibilidade, a percepção de que muitas das afirmações feitas em estudos científicos não se sustentam quando um grupo independente tenta replicá-los.

Uma enquete de 2016, publicada na Revista Nature, da qual participaram 1.576 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento (703 biólogos, 106 químicos, 95 cientistas da terra, 203 médicos, 136 físicos e engenheiros e 233 de outras áreas), mostrou que 90% deles afirmam existir uma crise de reprodutibilidade na produção científica, sendo que 52% do total afirmaram tratar-se de uma crise significativa. Apenas 3% refutaram taxativamente tal diagnóstico (BAKER, 2016).

Se, como vimos, na comunidade científica, a existência de problemas é praticamente um consenso, o debate em torno da natureza dos mesmos e consequentemente de suas causas e efeitos é uma polêmica em aberto.

Figura 1: Há uma crise de reprodutibilidade?

Fonte: NATURE, 2016

A pesquisa da Nature nos mostra também não existir ainda um consenso sobre o que enseja essa crise, que tem até sua denominação em debate. Os pesquisadores também foram instados a responder sobre fatores que levassem a problemas com a reprodutibilidade e as respostas se distribuíram em 15 fatores distintos. As principais causas apontadas relacionam-se com problemas no processo de produção científica mais geral, e não meras questões técnicas, mas o que sobressai é a sensação difusa de um mal-estar crescente, uma percepção emergente comum à grande maioria dos pesquisadores, sem que haja um diagnóstico mais preciso, em que pese o deficit real de reprodutibilidade já ter sido objetivamente constatado há mais de uma década.

No artigo publicado com os resultados da enquete, consta uma afirmação de Arturo Casadevall, um microbiólogo da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e defensor da necessidade de uma reforma na ciência, de que reconhecer que há um problema é um passo adiante (CASADEVALL, 2012) e que “o próximo passo pode ser identificar qual o problema e obter-se um consenso” (CASADEVALL apud BAKER, 2016, tradução nossa). Desta forma, o tema da crise na produção científica merece ser objeto de uma investigação mais profunda, que inclusive descreva a relação dialética entre essa crise específica e a crise do capital, a qual, conforme demonstrou Bevilaqua (2011, 2015), se generaliza em seu auge para todas as esferas da sociedade.

Resumo da dissertação

ROCHA, R. C. Crise do capital e crise na produção científica. 2018. 150f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

A presente dissertação de mestrado tem por objetivo sustentar a hipótese da existência de uma crise na ciência, tomando por fundamento a crise na produção científica, sua existência como crise de paradigmas em diferentes campos científicos e sua relação com a Crise Orgânica do Capital. A relevância deste tema advém das implicações da crise no desenvolvimento de políticas públicas. A pesquisa empírica realizada demonstra que existem diversas concepções de crise em diferentes campos da ciência, como Crise de Reprodutibilidade, Crise Estatística, Crise do Produtivismo Acadêmico, etc. Todas estas problemáticas são ardorosamente debatidas pela comunidade de pesquisadores. Contudo, observa-se a ausência, na maioria das interpretações da revisão bibliográfica desta dissertação, de uma preocupação com as causas mais fundamentais destes problemas. A crise de paradigmas nas ciências deve ser compreendida à luz da Crise Orgânica do Capital, que por sua vez se manifesta como crise econômica mundial. A tendência à erosão do paradigma do valor, conforme apontada por Marx nos Grundrisse, resultado do processo de automação identificado com a terceira fase da Revolução Industrial, constrange a produção científica, que deve ser considerada em seu duplo aspecto: através do seu valor de uso, derivado do acúmulo do conhecimento humano sobre os objetos estudados, mas também através do seu valor de troca, o que explica sua moldagem ao papel que ela crescentemente passa a ocupar no centro do processo de valorização de capital.

Palavras-chave: crise. ciência. paradigmas. marx.