Quando falamos em crise na ciência, podemos distinguir diversos problemas, alguns deles debatidos abertamente na comunidade científica, outros nem sempre bem enunciados ou definidos, que transparecem como um mal-estar nos meios acadêmicos, enquanto brota no público em geral uma desconfiança a respeito das pessoas apontadas como especialistas. Mesmo com muitas omissões da grande mídia, eventualmente circulam notícias de fraudes envolvendo alguma instituição de destaque, ou ainda ocorre alguma catástrofe não prevista por toda uma comunidade de cientistas.

Entre os grandes problemas contemporâneos que afetam a produção científica, talvez nenhum tema tenha perpassado de forma tão longitudinal o debate entre os mais díspares campos do conhecimento como a questão da Crise de Reprodutibilidade, que se tornou objeto de estudo da filosofia e da sociologia da ciência.

Muitos cientistas e também filósofos da ciência têm se debruçado sobre este problema. Uma de suas faces mais palpáveis, que tem um maior destaque na imprensa e nas publicações acadêmicas, e para a qual surgiram diferentes iniciativas profiláticas, é a Crise de Reprodutibilidade, a percepção de que muitas das afirmações feitas em estudos científicos não se sustentam quando um grupo independente tenta replicá-los.

Uma enquete de 2016, publicada na Revista Nature, da qual participaram 1.576 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento (703 biólogos, 106 químicos, 95 cientistas da terra, 203 médicos, 136 físicos e engenheiros e 233 de outras áreas), mostrou que 90% deles afirmam existir uma crise de reprodutibilidade na produção científica, sendo que 52% do total afirmaram tratar-se de uma crise significativa. Apenas 3% refutaram taxativamente tal diagnóstico (BAKER, 2016).

Se, como vimos, na comunidade científica, a existência de problemas é praticamente um consenso, o debate em torno da natureza dos mesmos e consequentemente de suas causas e efeitos é uma polêmica em aberto.

Figura 1: Há uma crise de reprodutibilidade?

Fonte: NATURE, 2016

A pesquisa da Nature nos mostra também não existir ainda um consenso sobre o que enseja essa crise, que tem até sua denominação em debate. Os pesquisadores também foram instados a responder sobre fatores que levassem a problemas com a reprodutibilidade e as respostas se distribuíram em 15 fatores distintos. As principais causas apontadas relacionam-se com problemas no processo de produção científica mais geral, e não meras questões técnicas, mas o que sobressai é a sensação difusa de um mal-estar crescente, uma percepção emergente comum à grande maioria dos pesquisadores, sem que haja um diagnóstico mais preciso, em que pese o deficit real de reprodutibilidade já ter sido objetivamente constatado há mais de uma década.

No artigo publicado com os resultados da enquete, consta uma afirmação de Arturo Casadevall, um microbiólogo da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e defensor da necessidade de uma reforma na ciência, de que reconhecer que há um problema é um passo adiante (CASADEVALL, 2012) e que “o próximo passo pode ser identificar qual o problema e obter-se um consenso” (CASADEVALL apud BAKER, 2016, tradução nossa). Desta forma, o tema da crise na produção científica merece ser objeto de uma investigação mais profunda, que inclusive descreva a relação dialética entre essa crise específica e a crise do capital, a qual, conforme demonstrou Bevilaqua (2011, 2015), se generaliza em seu auge para todas as esferas da sociedade.